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Manifesto sobre a vida do artista

Por Marina Abramovic




1. a conduta de vida do artista:

- o artista nunca deve mentir a si próprio ou aos outros
- o artista não deve roubar idéias de outros artistas
- os artistas não devem comprometer seu próprio nome ou comprometer-se com o mercado de arte
- o artista não deve matar outros seres humanos
- os artistas não devem se transformar em ídolos
- os artistas não devem se transformar em ídolos
- os artistas não devem se transformar em ídolos

2. a relação entre o artista e sua vida amorosa:

- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista
- o artista deve evitar se apaixonar por outro artista

3. a relação entre o artista e o erotismo:

- o artista deve ter uma visão erótica do mundo
- o artista deve ter erotismo
- o artista deve ter erotismo
- o artista deve ter erotismo

4. a relação entre o artista e o sofrimento:

- o artista deve sofrer
- o sofrimento cria as melhores obras
- o sofrimento traz transformação
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito
- o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito

5. a relação entre o artista e a depressão:

- o artista nunca deve estar deprimido
- a depressão é uma doença e deve ser curada
- a depressão não é produtiva para os artistas
- a depressão não é produtiva para os artistas
- a depressão não é produtiva para os artistas

6. a relação entre o artista e o suicídio:

- o suicídio é um crime contra a vida
- o artista não deve cometer suicídio
- o artista não deve cometer suicídio
- o artista não deve cometer suicídio

7. a relação entre o artista e a inspiração:

- os artistas devem procurar a inspiração no seu âmago
- Quanto mais se aprofundarem em seu âmago, mais universais serão
- o artista é um universo
- o artista é um universo
- o artista é um universo

8. a relação entre o artista e o autocontrole:

- o artista não deve ter autocontrole em sua vida
- o artista deve ter autocontrole total com relação à sua obra
- o artista não deve ter autocontrole em sua vida
- o artista deve ter autocontrole total com relação à sua obra

9. a relação entre o artista e a transparência:

- o artista deve doar e receber ao mesmo tempo
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber
- transparência significa receptividade
- transparência significa doar
- transparência significa receber

10. a relação entre o artista e os símbolos:

- o artista cria seus próprios símbolos
- os símbolos são a língua do artista
- e a língua tem que ser traduzida
- Às vezes, é difícil encontrar a chave
- Às vezes, é difícil encontrar a chave
- Às vezes, é difícil encontrar a chave

11. a relação entre o artista e o silêncio:

- o artista deve compreender o silêncio
- o artista deve criar um espaço para que o silêncio adentre sua obra
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento
- o silêncio é como uma ilha no meio de um oceano turbulento

12. a relação entre o artista e a solidão:

- o artista deve reservar para si longos períodos de solidão
- a solidão é extremamente importante
- Longe de casa
- Longe do ateliê
- Longe da família
- Longe dos amigos
- o artista deve passar longos períodos de tempo perto de cachoeiras
- o artista deve passar longos períodos de tempo perto de vulcões em erupção
- o artista deve passar longos períodos de tempo olhando as corredeiras dos rios
- o artista deve passar longos períodos de tempo contemplando a linha do horizonte onde o oceano e o céu se encontram
- o artista deve passar longos períodos de tempo admirando as estrelas no céu da noite

13. a conduta do artista com relação ao trabalho:

- o artista deve evitar ir para seu ateliê todos os dias
- o artista não deve considerar seu horário de trabalho como o de funcionário de um banco
- o artista deve explorar a vida, e trabalhar apenas quando uma idéia se revela no sonho, ou durante o dia, como uma visão que irrompe como uma surpresa
- o artista não deve se repetir
- o artista não deve produzir em demasia
- o artista deve evitar poluir sua própria arte
- o artista deve evitar poluir sua própria arte
- o artista deve evitar poluir sua própria arte

14. as posses do artista:

- os monges budistas entendem que o ideal na vida é possuir nove objetos:
1 roupão para o verão
1 roupão para o inverno
1 par de sapatos
1 pequena tigela para pedir alimentos
1 tela de proteção contra insetos
1 livro de orações
1 guarda-chuva
1 colchonete para dormir
1 par de óculos se necessário
- o artista deve tomar sua própria decisão sobre os objetos pessoais que deve ter
- o artista deve, cada vez mais, ter menos
- o artista deve, cada vez mais, ter menos
- o artista deve, cada vez mais, ter menos

15. a lista de amigos do artista:

- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito
- o artista deve ter amigos que elevem seu estado de espírito

16. os inimigos do artista:

- os inimigos são muito importantes
- o Dalai Lama afirmou que é fácil ter compaixão pelos amigos; porém, muito mais difícil é ter compaixão pelos inimigos
- o artista deve aprender a perdoar
- o artista deve aprender a perdoar
- o artista deve aprender a perdoar

17. a morte e seus diferentes contextos:

- o artista deve ter consciência de sua mortalidade
- Para o artista, como viver é tão importante quanto como morrer
- o artista deve encontrar nos símbolos da sua obra os sinais dos diferentes contextos da morte
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo
- o artista deve morrer conscientemente e sem medo

18. o funeral e seus diferentes contextos:

- o artista deve deixar instruções para seu próprio funeral, para que tudo seja feito segundo sua vontade
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida
- o funeral é a última obra de arte do artista antes de sua partida




A poesia rara de Karinna Gulias


Se você não for uma pessoa investigativa ou não tiver um pouquinho de sorte, dificilmente terá ouvido falar em Karinna Alves Gulias. Não é uma poeta que está “na moda” ou que tenha aparecido nos jornais nas últimas semanas, apesar do grande destaque que se tem dado aos novíssimos autores. Ela mesma não faz muita questão disso e evita qualquer movimento no sentido de chamar demasiada atenção para si, tendo sempre preferido manter-se fora do burburinho. Entretanto, os poucos privilegiados que conhecem o seu trabalho são unânimes em reconhecê-la como uma das mais interessantes poetas surgidas nestes últimos anos.

Pelo seu caráter reservado, Karinna frequenta pouco as redes sociais e é mesmo estranha aos bons jovens escritores de agora. Vivendo atualmente no Reino Unido, a única graça que dá de sua poesia é através do blog Beggar’s Body Art, que ela atualiza com suas mais recentes composições – muitas (e cada vez mais) em inglês. Seu primeiro e único livro “Maria da Graça, Terra dos nomes perdidos” (Selo Orpheu, Editora Multifoco, Rio de Janeiro) teve tiragem limitada e foi distribuída a amigos próximos (não está nas livrarias, mas pode ser encomendado pelo site da editora). 

Lançado há dois anos, inaugurando positivamente a década de 2010, o livro é resultado da mais requintada ourivesaria poética. Valendo-se de uma narrativa mítica, a obra nos faz acompanhar a história de Poca Sombra e seu filho, chamado simplesmente de Filho, para construir um épico de fundação dos subúrbios do Rio de Janeiro. O livro surpreende pelo que possui de original e inexplorado, sem deixar de ter o poder de tocar sensivelmente (e, ao final, muito profundamente) nos medos e aspirações mais radicais. Ali, Maria da Graça é uma reinvenção poética do decadente e nada glamouroso bairro carioca; tão real quanto o imaginário que tomava a poeta quando morava nos subúrbios do Rio e diariamente passava pelo local. Karinna conhece como ninguém o poder encantatório das palavras e com seu livro aponta, com uma rara vocação à precisão da escrita, um caminho inédito na literatura brasileira - ainda que com fortes raízes na tradição do país - e verdadeiramente difícil para uma autora ainda muito jovem.

É fascinante ver uma poeta com menos de trinta anos imprimindo tamanha força, competência e complexidade arquitetônica em sua composição, arriscando-se na confecção de uma escrita ultratrabalhada, com a qual, valendo-se da serenidade de uma monja budista, desenha uma caligrafia de metáforas radicais e contrastantes

Karinna foi uma das fundadoras da editora Confraria do Vento e foi colaboradora ativa da Revista Confraria em seus últimos anos. Tenho muito orgulho de ter estado na aurora da escrita dessa moça, em uma época em que tanto ela quanto eu vivíamos no Rio e pudemos trocar experiências. Quem acompanha seu blog sabe que sua escrita continua crescendo e sabe que, a seu tempo, mas com seguríssima certeza, ouviremos muito falar dela. Quem viver verá.

Se tudo o que eu disse não parece convincente, confira abaixo, a primeira parte de seu livro.



[Torre-olho]

Nos atos em que nossa terra espera grandezas de líder, ordenados, verticalismos, emque o sagrado purifica a palavra humana e implanta cidades, habitações de seres autônomos com seus caminhos postiços. Vigente. E da mulher, conceito e instituição moral: aquela que pronuncia a defesa da palavra presenterito. Planta datual guerra e comércio. Nas leituras emque tudo está na verdade daqueles que pensam na linha da história romântica, ideológica: Descascar.
Nos atos feitos pelo nó da justiça da igualdade da liberdade. Os olhos encaram o objeto dismisso. Predomínio das coisas à imagem do vento: desmitificar de nomes e terras: Vento. Uno. Sobre aquelas que gestam: as coisas, a mulher, as mulheres, a terra; irremediavelmente iguais à vista. Conceitos puros presenteritos. Do subjeto olho que age livre. Conhecimento ativo: Descascar.
Conflito: Não está tudo no olho de um.
A língua se faz com dois. O lugar: a guerra e a gesta.


Parte I – A Primeira História

[O que não é]

Uma mãe feita para criar bois [espelhados],
administrar a base da terra para a permanência.
Fez um filho com a massa negra da noite.

Uma mãe feita para criar bois [gigantes]
e aumentar a sua sombra.

Acendeu velas
para o dia em que seria dona de cria.
Com o movimento,
seu nome mudou-se para outra casa;
pertence a outro lugar. A outro ofício.

Na mudança:
— De todos os rios por que passou,
ficou-lhes terços de seu cabelo, agora branco,
como espuma de mar.

À noite os rios a visitavam e derramavam
transparência em seu peito. De seu ventre, então,
nasceram cabelos de estrelas e espumas de mar. —

Mais uma vez seu nome foi mudado de casa,
                                                   até a vontade se retrair.
Seus cabelos caíram e o nome passou a ser:
poca sombra
e por fim
Nasceu um menino.




[Êxodo]

Novas sementes e flores cresceram;
o céu não era mais o velho, de lá nasciam pássaros
revelados a apenas um olho.
Maria da Graça,
antiga cidadela de grumo, aquática,
aterrada por trens.

***

De um lado ao outro, em Maria da Graça,
as pessoas atravessavam trens parados — homens ajudavam moças
e crianças [todos sem nomes.
Os trens brotavam da areia e propunham trilhos à terra.

***

Poca Sombra, nascida dentre nomes —
Era apelidada a mãe. Expulsa para a terra do comboio.

***


E as mães foram feitas para serem outra.




[Sistema de aço]

Partitura de aço, não ossos.
Para cada vida, um aparelho de imortalidade:
o ofício.

***

Eu comeria deus todo dia,
no olho das plantas; as plantas.
Poca Sombra não conhece a folha verde:
esquece que um dragão se cria na pilha de folhas secas:
avermelhando.

Ela sempre esquece novos pensamentos.




[Maria da Graça]

A encosta repetia os nomes perdidos,
[Muros sempre se erguem na pedra do sapo e no jacarezinho... –
o balbucio de palavras carregadas de vento:
                     Caíam duras como imagem no chão. 
                     E delas brotavam mais e mais trens.

Ferradura logística;
cargas de banha e sebo de cavalos e corpos.
                     Toda a banha se transforma em ferro e giz.

***

Poca Sombra não mais se sacrifica.
Poca Sombra chora
e a noite limpa seus olhos com desejos;
agora volta a ter destino. Já fadada a viver sem nome,
                                             na terra dos sem nome.
— Abandona Poca Sombra e cristaliza-se mãe.


***

Ninguém era de saber dela, nem antes, nem agora.
Todo seu movimento de eregir-se ficou para deus,
que passou a dever-lhe um nome.
Sem ter seu nome de volta,
comeu os dentes de leite de seu filho,
e virou Filho.

(...)


Parte III - Atalho

Filho pulou todos os anos de infantilidade.
As vias do trem eram seu caminho mais curto.
Não ouviu fábulas; nasceu homem.
Um homem sem efabulações é um senhor da dor.
A maldade lhe cai bem.

***

poca sombra, ainda quando via seu nome nascer,
imaginava o caminho de seu filho. Sempre a andar
sobre trilhos vazios. O trem vinha de longe.
O caminho de Filho era grandioso. Sem dor.
Mas o trem a iludiu.
Seu barulho, quando passava, que era grande.





Mais em beggarsbodyart.blogspot.com

Crítica de Marcelo Ariel ao livro "Maria da graça, terra dos nomes perdidos": http://www.acextrapolar.com/blog/?p=2254

Poesia x Política

Durante o Festival Internacional de Poesia de Roterdã, conheci um poeta palestino que, meses antes, havia cancelado sua participação em um evento na França, por este ter em sua programação o escritor israelense Moshe Sakal. Najwan Darwish recusa abertamente dividir qualquer evento com um israelense. Anos atrás, em 2007, eu tinha me deparado com uma situação semelhante: no Encontro Internacional de Poetas de Coimbra, a poeta palestina Faiha Abdulhadi e o poeta israelense Yitzhak Laor sequer se falaram. O que pode parecer a nós uma arbitrariedade é algo muito mais profundo e não pode ser reduzido a mera "xenofobia palestina" (como Marcos Guterman escreveu no Estado de São Paulo). Este caminho escolhido – não à toa – por ambos os poetas palestinos que conheci é uma forma de protesto radical que tem os seus motivos de ser baseados em feridas profundas – mas não de um passado recente ou distante, e sim feridas que estão sendo abertas agora. Durante os dias em Roterdã, convivi com um Najwan tenso e sempre na defensiva quando conversava. Com o decorrer do festival, foi relaxando e, no último dia, acabou saindo para beber com alguns brasileiros. Foi quando ele pôde nos esclarecer um pouco de como a banda toca por lá, na "Palestina ocupada" (termo que ele usou para me corrigir quando mencionei a palavra Israel), com o cotidiano de humilhação e segregação do seu povo – que ele descreveu como um pesadelo existencial permanente. Para ilustrar, nos contou que viver ali era como estar sob um governo totalitário e repressor aplicado somente a uma parte da população. Isso para não mencionar a faixa de gaza, que foi relegada a terra de ninguém por um muro e onde o contato com o mundo exterior é sujeito a risco de vida. Enfim, esse contato com Najwan me fez querer conhecer um pouco mais sobre a situação da Palestina e tentar entender como se chegou a isso. Foi assim que descobri o documentário abaixo. Apesar de não ser exatamente sobre o conflito em Israel (ou Palestina ocupada), esclarece como (alguns) setores judaicos vêm justificando ideologicamente, aos olhos do mundo, o seu "direito" à fundação de Israel – e lucrando com isso. Lembro que é um documentário feito por judeus e que todos os entrevistados são judeus e que, portanto, estaria livre de qualquer tendenciosidade inspirada pela "xenofobia palestina". Vale a pena uma vista de olhos.

ROMANCE PARA PERFORMER NEUTRO

Acción para executante de xénero neutro en honor a Urano e Géia:


1. Amarse a sí íntima e públicamente;


2. Camiñar entre unha cousa e outra, non sendo nin unha cousa nin outra, atopar o punto equidistante entre o corpo e a alma e medir o espazo coa entreperna;


3. Roubar da paisaxe a palabra exacta para describir o desencontro entre ceo e terra;


4. Escribir esta palabra nun anaco de papel e queimalo nun turíbulo, ofrecendo ao ceo este sacrificio da terra, pronunciando os seguintes sons:


Entre A# e O# | Entre Ab e Ob | Entre A# e Ob | Entre Ab e O#


5. Prantar alí unha semente e o que alí medre terá que ser un instrumento musical para o vento. 


Ana Gesto e Márcio-André

Uma estética da complexidade, por E. M. de Melo e Castro

E. M. de Melo e Castro, um dos grandes nomes da poesia portuguesa, acaba de publicar, no Portal Cronopios, um ensaio sobre minha performance MULTITUBETEXTURA. O texto faz parte de artigo que estará na próxima edição da Revista "O Eixo e a Roda", da UFMG. Eis o texto:




Falar numa estética da complexidade pode parecer a muitos talvez problemático, embora as orquestras sinfônicas, que podem chegar a ter mais de cem instrumentos musicais tocando simultaneamente uma sinfonia de Beethoven ou de Mahler, não nos causem qualquer estranheza. E uma autopista com 4, 5 ou 6 faixas de rodagem em cada sentido, repleta de automóveis em movimento, em dois sentidos opostos, é uma situação banal do quotidiano, que faria exultar de satisfação e de incredibilidade qualquer artista futurista de há cem anos atrás. Para nós, tal situação é apenas mais uma forma de constrangimento e um sinal do perigo e de efeito de desastre, que a toda hora nos espreita nas grandes metrópoles. Mas se fotografarmos ou filmarmos essas autopistas, de dia ou de noite, de um ponto alto, de avião ou helicóptero, teremos belíssimas imagens da complexidade móvel. Imagens, isto é, sinais esteticamente ativos e prazerosos, das estruturas complexas em que vivemos. (Este efeito tem sido muito explorado em algumas telenovelas). Tais imagens, que são naturalmente ícones, têm também a capacidade de agir sobre os nossos sentidos como índices sensíveis de fruição, tal como agem sobre nós as chamadas “obras de arte”! E essas imagens têm tais capacidades (ditas estéticas), justamente porque foram obtidas através de dispositivos tecnológicos comandados por homens que tinham uma intenção: obter imagens capazes de nos impressionar e provocar prazer, tal como todos os artistas sempre tiveram, com os instrumentos e as tecnologias do seu tempo, desde a pré-história até hoje! Só que hoje a situação é sinestésica e por isso complexa, podendo ser globalmente difundida!


John Cage disse (numa entrevista dada, tendo um gato na mão, numa janela aberta sobre as ruas de New York, por onde entravam todos os ruídos do tráfego intenso) que para ele essa paisagem visual-sonora bastava como fato sensorial sinestésico e que certamente o gato sabia tudo sobre isso!... (citação feita de cor). Por isso uma estética da complexidade é, não só possível, como necessária para entendermos mais profunda e eficazmente a enorme variedade de imagens com que os dispositivos tecnológicos nos vêm cada vez mais capacitando e transformando a nossa sensibilidade e percepção. Mas é preciso reprocessarmos o conhecimento filosófico e teórico do passado, numa perspectiva múltipla e probabilística, observando fenomenologicamente com olhos-outros, tanto o que vemos e sentimos, como o que nos é feito ver e sentir pelos equipamentos produtores de imagens de que dispomos e cada vez mais, nos seduzem e utilizamos. Isto porque as imagens-outras que hoje produzimos, são outras e diferentes, mas são imagens, cada vez mais outras-diferentes e autônomas, cada vez mais capazes de nos surpreender, obrigando-nos a persegui-las e a questionarmo-nos sobre as nossas próprias capacidades de invenção, lançando-nos freqüentes vezes em puras situações de abdução!


Parece óbvio dizer que não existe uma só maneira de encarar a complexidade e de com ela trabalhar inventivamente. Porque se só houvesse uma, não existiria complexidade. E o nosso “agora” é complexo. Dizer isto tem o sabor de uma tautologia ou de uma verdade que ninguém se lembraria já de contestar. É numa encruzilhada sensorial, cheia de armadilhas, e por isso amplamente sedutora, que as performances multimídia que Márcio-André tem recentemente realizado vêm ao nosso encontro simultaneamente como produtos estéticos complexos e intuições poéticas inusitadas, dados a partir de elementos díspares, muitas vezes, do nosso contemporâneo dia a dia: vídeos captados no YouTube ou realizados para outros fins. Esses elementos visuais são aleatória ou programadamente sobrepostos e sintetizados, num clima pansinestésico totalizante, não se sabe bem de quê. É esse o encanto e o novo que essas performances nos oferecem pelo tratamento das imagens múltiplas e das sonoridades casuais eletronicamente tratadas (mas não sincronizadas) e pela presença surpreendente de um autor-executante de violino eletrônico, assim como de atores ou bailarinos que são sombras fantasmáticas de uma talvez já desnecessária presença humana.


Os ingredientes usados no coquetel multimídia Multitubetextura, em sua recente apresentação em São Paulo, na Casa das Rosas (18 de janeiro de 2011), foram assim descritos no programa:


Márcio-André é reconhecido internacionalmente por explorar a partir doimproviso, as possibilidades da fala, libertando a poesia dos limites da leitura eextrapolando a fronteira com a música experimental. Nesse espetáculo,projeções simultâneas de vídeos escolhidos no YouTube serão manipuladas eprocessadas em tempo real...


Mas isto não é tudo. O que de fato aconteceu foi a improvisação principalmente feita num violino eletrônico, de que Márcio é exímio executante, sendo o som processado por um computador através do qual foi comandada toda a performance. Os vídeos, criteriosamente escolhidos no YouTube, segundo temas pré-programados, foram apresentados em imagem múltipla em 2 grupos que variavam entre 9 e 12 vídeos simultâneos... porque na sala não havia espaço para mais...


As peças apresentadas foram:


1. poets
2. trains
3. indivisível
4. soundscapes
5. minimal body percussion
6. Quatro cantos do caos - 4º canto


A primeira peça, POETAS, era constituída por vídeos dos seguintes 9 poetas,todos falando simultaneamente, dizendo, cada um, o seu discurso:


Haroldo de Campos / Octávio Paz / Bernard Heidsieck
Anne Sexton / Ezra Pound / Stepehn Rodefer
Paulo Leminski / Gozalo Rojas / Hilda Hilst


Mas todos estes poetas podem ser substituídos por outros, conforme o momento ou o desejo do autor. O poema sonoro resulta da sobreposição das vozes e das intervenções musicais ou verbais ou mesmo performáticas do executante musical ou de outras pessoas que o desejarem.


O poema TRENS é composto por nove vídeos, nos quais se vê a mesma perspectiva dos trilhos na deslocação de diferentes trens, cada um com a sua velocidade, indo em diversas direções, saindo e entrando das estações ou em marcha pelo campo ou pelas cidades. As imagens múltiplas e simultâneas, mas divergentes, provocam efeitos sinestésicos de alucinação que são reforçados pelas intervenções musicais ou vocais improvisadas.


Noutro destes poemas, PERCUSSÃO CORPÓREA MINIMAL, o mesmo vídeo de um bailarino percutindo o seu corpo com as mãos, de um modo rítmico esquemático, é exposta em nove imagens dessincronizadas produzindo um efeito de multiplicação, esteticamente complexo.


Estas pequenas descrições servem apenas para enfatizar a importância perceptiva e poética da simultânea multiplicidade das imagens visuais/corporais/vocais/musicais/performáticas/ etc quando integradas numa coerência de invenção em que o acaso é o rigoroso mestre.



Quase sempre o autor realiza pequenos filmes das suas performances que coloca no YouTube, não só registrando as improvisações sonoras e visuais, como transformando-as em objetos de telearte que podem ser livremente acessados por um número imprevisível de navegadores na Internet. Uma rápida busca no YouTube revelará que existem algumas dezenas de vídeos de poesia sonora-visual ou de performances de Márcio-André que são exemplo dessa mesma já referida telearte. Este fator é muito importante porque assim se alarga o número de fruidores da poesia multimídia, numa época em que o fenômeno poético está em transformação quanto a suportes e meios. A poesia sinestésica de Márcio-André deve ser assim entendida como uma válida resposta aos arautos nefastos do fim da poesia.


Na caracterização deste forma de arte, alguns conceitos usados, como acaso,sinestesia e performance, penso necessitarem ser melhor esclarecidos quanto ao sentido do seu uso em referência aos trabalhos de Márcio-André. Entre a estrutura determinista de um romance convencional, ou a partitura de uma ópera e o barroquismo de uma obra musical aberta , ou de uma peça de Samuel Beckett conceptualmente indeterminada, onde se podem situar esteticamente as performances de Márcio-André? Creio que a resposta se situa numa região onde a noção de acaso seja preponderante. Mas o que pode ser o acaso na estrutura de uma obra de arte onde o meio em que realiza e a sua intenção comunicacional são determinantes? 


Numa conjuntura de “estética relacional” que “consiste em julgar as obras de arte em função das relações inter-humanas que elas figuram, produzem ou criam” (Nicolas Bourriaud, Estética Relacional, Martins Fontes, SP 2009) será preciso distinguir a complexidade de, por exemplo, uma peça de teatro musical e as performances de Márcio-André, em que os vários elementos constitutivos são muito semelhantes, tais como música, representação teatral e corporal, iluminação cênica, cenários, voz humana falada e cantada e até a coordenação informatizada. Entretanto, na peça de teatro tudo está previsto objetivamente e ensaiado até mesmo a interpretação dos atores. Nas performances de Márcio-André, os elementos de semelhante natureza são montados e postos em relação de um modo aleatório, sem outra coordenação que a subjetividade dos intérpretes e o manuseamento dos dispositivos informáticos de luz, texto, imagem e som, apenas muitas vezes minimamente programados. Estamos então perante uma noção do caos intuitivo, que nada tem a ver com o caos matemático e das ciências físicas. Mas que também não é a improvisação possível, dentro de certos parâmetros, da música barroca. Tem muito mais a ver com as relações inter-humanas que a própria execução e atuação geram, e mesmo a interação com o público pode produzir variações nas apresentações vivas.


Já o caso das apresentações na internet, estando as atuações gravadas, é gerado um diferente tipo de relações inter-humanas, pois o que está em causa é a larga difusão não programada a vastas audiências, em indeterminados locais do planeta Terra e em tempos incontroláveis. Tais relações virtualizam-se e são apenas potencialmente caóticas. São, portanto, uma nova forma de telearte, em que até a existência do autor se desmaterializa e fica problemática.


Também a própria noção de performance se desmaterializa e se poli-situa em todos os espaços possíveis, dos quais o próprio autor nunca terá conhecimento completo, tornando-se a performance, nesse aspecto, semelhante a um livro (que pode estar em qualquer lugar), mas com uma tiragem ilimitada e uma intervenção e relacionamento poli-social totalmente abertos, contrariamente às performances do final do século XX que eram acontecimentos fechados, ainda que conceptualmente abertos e aptos para a intervenção política. Sabemos hoje que esta intervenção é também possível pela Internet, podendo os conteúdos políticos e ideológicos ser realizados pelos novos meios tecnológicos através da qualidade estética específica e que lhes é própria. Penso ser este o caso das performances sinestésicas de Márcio-André, que são sinestésicas porque colocam em evidência as potencialidades do funcionamento simultâneo de todos os nossos sentidos. E não há nada mais subversivo e desmitificador que o funcionamento simultâneo e caótico de todos os sentidos do nosso corpo humano.


* * *
  
E. M. de Melo e Castro é poeta, ensaísta e crítico da poesia experimental contemporânea. É um dos líderes da poesia experimental portuguesa, pesquisador, escritor e engenheiro têxtil.

Lustra, de Ezra Pound

Resenha que escrevi para o Prosa & verso (O Globo) sobre a tradução de Lustra (Selo Demônio Negro)


Em se tratando da concepção do poema, poucos foram os que, como Ezra Pound, compreenderam a efetiva conexão entre técnica e inspiração. O controverso poeta americano não via aí uma oposição dialética entre ambas, como é vulgarmente entendida, mas uma mecânica complementar: a inspiração como combustível para os diversos modos de complexidade da escrita. Quanto mais preparado fosse o poeta, melhor ele poderia empregar a energia furiosa da criação. Munido dessa compreensão, Pound criou uma obra que inspirou paixão – e também ódio – pelo seu caráter transgressor, anticonformista e supostamente hermético.

De modo análogo, poucos são os editores hoje no Brasil que articulam em seu ofício a mesma técnica e paixão com a qual Vanderley Mendonça dirige seu pequeno selo Demônio Negro, sediado em São Paulo. Produzindo manualmente volumes em capa dura, impressos com máquinas alemãs centenárias, que ele mesmo procura (nos mais distantes recantos rurais da Europa) e restaura, tem levado ao mercado obras fundamentais, não obstante raras ou inéditas em português. Pelo selo já foram lançadas joias como a primeira versão completa e não fac-similada de "O Guesa", de Sousândrade, e textos negligenciados de Octavio Paz, Verlaine, Rubén Darío e Ramón Gómez de la Serna, corrigindo escandalosas faltas no catálogo dos colossos editoriais. 

Não por acaso, é a Demônio Negro que se arrisca agora a lançar a edição integral de "Lustra", de Pound, com tradução de Dirceu Villa. A despeito da importância da coletânea dentro da obra do autor, o público brasileiro dispunha apenas de duas dezenas de seus poemas traduzidos, nos anos 60, por Mário Faustino e Augusto de Campos. Considerando a dedicação com a qual os concretistas divulgaram a obra do poeta no Brasil, deixando legiões de seguidores, é de se espantar que tenhamos parado n"Os Cantos", traduzido por Grünewald, e em algumas antologias.

Mas é também em certa singularidade da obra que se revela o caráter guerrilheiro da edição. Muito além de preencher uma lacuna, sua chegada contribui para expandir (ou subverter) o imaginário que temos do poeta. Escrito durante os anos em que ele viveu em Londres, o livro nos traz um imagista de outra natureza: mais leve e discursivo, deliberadamente cômico, terno e satírico, menos alinhado com a densidade d"Os Cantos", ainda que estejam ali as aspirações épicas, o gosto pela poesia chinesa e latina e pela carpintaria meticulosa. Foi na capital britânica que o jovem Ezra achou um terreno propício para fundar as bases de sua poética revolucionária, na qual a fabulação pela “forma” correspondia à necessidade de escandalização da sociedade londrina.


Nesse Pound, encontramos a rebeldia boêmia, a verve polemista, a indignação com a intelligentsia vazia, o desejo de ferir os bons costumes, não esquecendo certa solidão melancólica (digna do fragmento de Lope de Vega colocado como epígrafe do segundo poema) e, em igual medida, o desejo incorrigível pelo mundo futuro, sonhado através do desprezo ao presente, como ecoa nos versos de “Causa”: Junto estas palavras para quatro pessoas/ Outros vão, quem sabe, ouvi-las;/ Ó mundo, mundo, sinto muito,/ Você não conhece essas quatro pessoas. Considerada sua primeira incursão modernista, antecipadora de tendências, o livro é obra do poeta full time, fora do gabinete, vivendo de e para sua arte e tempo; e no qual se vê a gênese do que ele viria a se tornar: um animista da forma – crente na mutação da matéria através da palavra. Um espírito rebelde que faz falta hoje. Como previsto, Lustra foi um escândalo, e Pound, criticadíssimo. Alguns poemas (reincluídos nessa edição) foram censurados, outros mutilados ou alterados. 

A competente tradução de Dirceu Villa tenta adequar-se à variedade de propostas dos poemas do livro – o que acaba por contribuir com disparidades nos métodos empregados. Faz falta, aliás, informação sobre como a tradução é conduzida. As notas e a introdução, apesar da linguagem excessivamente acadêmica (o que afasta do próprio clima inconformista da obra), são excelentes e trazem dados fundamentais sobre a obra e o autor, mas nada sobre o trabalho do tradutor.

Independente desses pormenores, "Lustra" é talvez o livro de poesia mais importante lançado nesse ano. Sua publicação traz ainda um feito notável em termos de atitude. Tal como os versos defendidos apaixonadamente por Pound para que não fossem suprimidos por decisão (também apaixonada) de seu editor, a presente edição é fruto da crença de um microeditor e de um jovem tradutor, lutando no dente contra forças invencíveis. O próprio fato de um poeta com menos de 40 anos arriscando-se na tradução de um autor complexo, até então restrito às gerações dos já ultraconsagrados, representa uma mudança de ângulo, um jeito de reivindicar maturidade e erudição às gerações de agora. Algo, enfim, que nos ajude a tentar recuperar um pouco da rebeldia perdida. Se o futuro é uma incógnita, o presente, mais sólido, permite-se ainda ser surpreendido.

MÁRCIO-ANDRÉ é poeta e tradutor

Radioactive Poetry

Poema publicado em inglês na última edição da revista americana Rattapallax



Encontros a volta da performance

Publicado na revista mexicana El Jolgorio Cultural


La performance no tiene sentido pero crea sentido
Bartolomé Ferrando

La performance (o el performance) es una disciplina artística que surge en el siglo XX, principalmente en las manifestaciones de las vanguardias europeas, como los futuristas, dadaístas y surrealistas. El concepto de la performance ha ido cambiando con el tiempo, muchos de estos cambios se han logrado a partir del trabajo con otras disciplinas artísticas. Poesía, música, escultura, artes plásticas, entre otras que han dado una retroalimentación a esta especialidad. Actualmente, en algunas universidades ya forma parte del plan de estudios de las escuelas de bellas artes aunque, en ocasiones, pertenece a las artes escénicas, en otras más, a las artes plásticas o la escultura. La performance ha sabido insertarse en el plano del desarrollo artístico, por su maleabilidad, que a diferencia de otras disciplinas artísticas, crea un sinnúmero de símbolos y lenguajes indescifrables; porque cada cosa es parte de la obra, el performermismo pertenece a ella, cada parte de su cuerpo puede ser usado de manera plástica o sonora.

Con el tiempo, la performance ha ido desarrollando espacios y formando públicos. Todo esto, a través de festivales que ahora mismo son muy importantes para su difusión en algunas partes de la península ibérica. Por ejemplo: Contenedores, en Sevilla; Acción Mad, en Madrid; Ebent, en Barcelona; Territorio Performance de Periferias, en Huesca; Chamalle X, en Pontevedra; La muga Caula, en Girona;Line up action, en Coimbra, Portugal; IMAN, en el Theatro Circo de Braga; Bienal de Cerveira y Epipiderme, en Lisboa. Todos estos festivales dan cabida y visibilidad a los performers.

En los diferentes festivales se pueden ver propuestas visuales, audiovisuales, plásticas, poéticas, y un sin número de ejemplos con el uso y la manipulación de la perfomance a través de las nuevas herramientas tecnológicas. Para la performer Ana Gestohttp://anagesto.blogspot.com/  (Santiago de Compostela, España), una de las disciplinas que le parece más cercana a la performace, es la escultura, principalmente por el uso del espacio. Además, por el manejo del cuerpo como elemento de la obra en sí,  el body art. El hecho/acto artístico que parte del cuerpo del artista, como soporte y como medio para desarrollar un nuevo lenguaje artístico.

Para el poeta y artista visual, Marcio-André, http://www.marcioandre.com/  (Río de Janeiro, Brasil) que participó recientemente en el festival Epipiderme 20 en Lisboa, la performance incorpora diversas disciplinas, aunque comenta que su trabajo parte de elementos poéticos, ya que la poesía en la performance es una forma de sacar al poema de la hoja impresa a partir de la palabra corporal, o la poesía sonora, que otorga un sin número de posibilidades. Ahora la poesía puede ser una manifestación escrita en bites, esto, debido al uso de las herramientas tecnológicas que forman parte de los elementos que se tienen para lograr enviar otro tipo de mensajes, ya que no sólo la poesía se incorpora acertadamente en el performance, también la música y las artes visuales; esto aglutina diversos mensajes en un mismo ambiente.

En el caso de la performance apoyada en las artes visuales y la tecnología, el artista Nuno Oliveira http://epipiderme.blogspot.com/ (Lisboa, Portugal) opina que él utiliza cualquiera de las herramientas para crear ambientes. Ya que la performance principalmente evita tener un discurso narrativo, aunque actualmente muchas personas piensen que a través de ella se pueden enviar mensajes subversivos o de cualquier índole, pues es una manifestación absurda; cuando no es así, ya que la performance interactúa, y más que dictar ideas, la propuesta es crear ambientes.

La performance es un arte que ha evolucionado vertiginosamente, aunque bien podría situarse en un tipo de disciplina artística que viene de más atrás en el tiempo, por ejemplo, desde los griegos con sus manifestaciones dramáticas o en el periodo medieval con los elementos aportados por el arte juglaresco. Esto, en la historia del arte occidental, también reconocemos que la performance tiene antecedentes en todas las culturas, no como se percibe en nuestros días, pero sí como manifestación que incorpora diversas disciplinas. Aunque la performance se puede estudiar desde diferentes disciplinas, es un arte  que se reinventa a cada momento, por tal motivo, es necesario verla: cómo se articula y cómo funciona, en el caso particular de cada artista.


Acerca del autor:

1955, poeta y novelista.
Autor de La máquina de coser, Raramus editores, 1980.
Actualmente radica en Lisboa, Portugal.

Revista 7 Faces. 3ª edição



Revista Babel Poética nº2

Para quem não conseguiu adquirir a edição impressa, vai abaixo a versão online. A revista, editada pelo poeta santista Ademir Demarchi, está ótima, com alguns dos mais relevantes poetas da atualidade. Além de ter colaborado no conselho editorial, indicando nomes, colaboro nesse segunda edição, com alguns poemas semi-inéditos. Desfrutem e compartilhem.


João Gilberto Noll e José Kozer escrevem sobre Cazas


Está saindo, pelo selo Dulcineia Catadora, a plaquete Cazas. Deixo aqui, parte do que João Gilberto Noll e José Kozer escreveram sobre o livro.



João Gilberto Noll

Num determinado ponto de “Cazas” destaca-se “a seiva dos geradores no ventre das lâmpadas”. O poema joga com esse circuito entre paredes, janelas, ruas, entre as coisas do mundo urbano, sobretudo, e às vezes contraditoriamente os atomiza de tal modo que aquilo que se chamaria de verso em outras manifestações poéticas mais discursivas posta-se em sua tensão de base –, pois que é de uma tensão primordial que se trata as três grandes peças do livro. Um sentimento assim talvez decorra da soberba materialidade das artérias dessa cidade indiferente ao autor do verbo, tão indiferente que este sente-se ofendido de caminhar “entre”, com pouca perspectiva de se integrar à passageira sina urbana. Às vezes, o sentido intra-doméstico parece marcado apenas nos seres naturais, como “o cosmético calcário do caracol (casa espiral infinita para dentro)”. A habitação humana “se recolhe para dentro” em situações muito especiais, como a da ausência decorrente das viagens. São palavras-espectros, sumárias, iluminadas pelos postes –, “Todo o resto um estado por definir”. Eis um acento viril, onde a graça é afetada por uma espécie de índole sarcástica: a voz reconhece que o amanhecer é pleno de afeto, sim, “e até deus se enternece”. O ritmo incisivo institui uma música de assertivas hieráticas que à primeira vista pode parecer impenetrável. Em leituras sucessivas, porém, o que se vê é que Márcio-André construiu uma obra definitiva ainda muito jovem. Eis um livro que demonstra o que há de melhor na nova poesia brasileira.


José Kozer

Es extraordinario el caudal poético entre los jóvenes de América Latina, tanto en español como en portugués, de Patagonia a La Habana, pasando claro está por Brasil. Y el libro de Márcio-André me confirma que ese florecimiento poético es verdadero y permanente, posible uno de los florecimientos más reales e importantes de este desastrado momento, ahí la poesía, su poesía, es fuego contra la inercia ambiente, y es aire contra el mercantilismo y el materialismo del capital y de la mediocracia política. Cazas me parece un libro de primera categoria.

Son poemas donde el lenguaje hurga, y al hurgar, al meterse en los microscópicos intersticios de la realidad, y de la realidad urbana, va gestando una casa interior, la del propio lenguaje, que de algún modo procura no sólo denunciar el horror, los canes y las violaciones contra una pared, los terremotos (Lisboa) que dan inicio a la misma ciudad que es otra, sino que además, sobre todo hacia el final del libro, procuran un espacio sagrado, yo diría ese espacio sagrado de la comunidad original, de la ciudad inicial, con sus perdidos rituales de iniciación.

Lenguaje que se desplaza para seguir hurgando y palpando, regenerando y rehaciendo, entendiendo. Lenguaje que sabe "armonizar" desde las asimetrías de la modernidad módulos diversos, módulos que no temen lo concreto, la descripción de lo concreto, y al mismo tiempo, universalizan. Reconstrucción, fundamentación, vuelta de revés a todo, a tantas cosas, pero no para dañar ni herir (esta caza no mata ni hace estragos en la casa, la urbe) sino para hacer de lo insólito una verdad habitable.

Didática pelos quanta

Escrevi esse texto por conta de uma conferência que proferi, em 2009, no Instituto de Língua e Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Posteriormente, li, na Sorbonne, uma versão em francês do texto. Por ocasião de sua publicação na revista Corsário, disponibilizo, aqui, o texto completo para leitura.


DIDÁTICA PELOS QUANTA


Todo esquecimento é fiel ao esquecido:

nos aproximamos de uma era supostamente sonhada desde o principio dos tempos e somente possível de ser alcançada após avançarmos sobre os limites do esquecimento – na mesma proporção em que aquilo que nos faz desejá-la parece radicalizar-se na direção oposta. Se, por um lado, é evidente a profunda aspiração por uma presença do humano sem demarcações, por outro, nos afundamos, a fim de alcançá-la, cada vez mais e sem retorno, nas delimitações do corpo e das disciplinas. Uma mesma potência parece gerar energia em direções opostas.


***

Neste texto sobre interdisciplinaridade, ouso propor a implosão do próprio conceito de interdisciplinaridade, visto que uma didática pelos quanta retrocede a um estado anterior a qualquer disciplina, inclusive à quântica. Em nossa história de segmentações, como tentativa de fundamentar a subserviência da Obra ao indivíduo, fomos obrigados a seccionar o real, sobretudo aquele que concerne ao conhecimento e às artes, em categorias como as de “linguagem”, “área” e “gênero” e acreditar que estas são propriedades estanques, desde sempre estabelecidas e quase imutáveis, mas com possibilidades de se interrelacionar. Conceitos como “interdisciplinaridade”, “transdisciplinaridade”, “multidisciplinaridade”, “pluridisciplinaridade” não fazem mais que atestar tal crença. O que proponho é que sequer falemos de recuperação de certa característica totalizante inerente à natureza das coisas, uma vez que as coisas nunca deixaram (e nem poderiam deixar) de pertencerem-se: falamos daquilo que, antes e agora e sempre, nunca foi qualquer outra coisa senão uma mesma coisa. É somente nessa complexidade que se faz possível o vislumbre de tal didática pelos quanta.

Mas, antes de traçar as linhas básicas desta didática antididática, precisaria narrar brevemente a experiência mística pela qual passei em 2007. Por conta de uma investigação sobre a poética das casas, acabei por fazer uma visita à Pripyat, a cidade fantasma onde em 1986 houve o famoso acidente de Chernobyl. A cidade, hoje um mausoléu radioativo, inabitável e impraticável, encerrava uma metáfora fundamental. Foi ali, isolado naquele deserto radioativo, em meio a um processo físico de contaminação com césio 137, iodo 131 e estroncio 90, que tive uma iluminação: sonhei que todas as coisas se pertencem mutua e concomitantemente. Quando retornei ao Rio de Janeiro, logo depois dessa peregrinação, fui convidado a palestrar em um encontro literário, cujo tema, coincidentemente, era “Contaminações”. Por conta dessa deixa do acaso, proferi uma conferência que propunha a contaminação como princípio de indeterminação entre obra e homem. A contaminação, muito mais do que sua moderna definição de “infectar”, “sujar”, “manchar”, encerra um sentido mais restrito, por consequência mais amplo: a palavra contaminação vem do latim contaminatio, que é, por sua vez, uma variação de contamino, palavra que designava a prática da contaminação, isto é, o ato de fundir em um só, várias comédias ou contos. Por extensão, veio a sugerir o sentido de “entrar em contato” e, só posteriormente, o sentido negativo relacionado à infecção.

A contaminação (palavra originalmente do âmbito literário), portanto, não é um princípio de troca hierárquica entre um contaminador e um contaminado. Em uma exposição, os elementos expostos uns aos outros se contaminam mutuamente. E aqui some qualquer sentido de linearidade e hierarquia, seja substancial, local, qualitativa e quantitativa. Mesmo em termos físicos, só podemos ser contaminados por algo que já esteja dentro de nós, ainda que enquanto possibilidade. A radiação gama só pode alterar a composição molecular das células humanas porque são também elas compostas por átomos. É somente enquanto entes atômicos que temos o poder de sermos alterados atomicamente – se não tivéssemos esse poder (o de sermos alterados em nossa unidade fundamental), somente aí seríamos imunes ao mundo e àquilo que altera.

Conceito anticonceitualizável, a “contaminação” propõe uma instância de interação poética onde tudo se confunde com tudo, pois que nada é apenas parte. Não estamos falando da intercessão das coisas nas coisas, mas de uma indeterminação de tal radicalidade que seria mais próprio dizer que as coisas são ou compõem um só corpo, manifestando-se coisas a partir da potencialidade desse (macro)corpo em dar-se enquanto singularidades. O nosso corpo, e agora falo propriamente desse que vestimos enquanto homens e mulheres, é uma usina de possibilidades e é somente por já estar-com e ser-com as coisas desde sempre, em sua profunda indefinição e articulação de outro e mesmo, que pode, este corpo, vir a ser nas coisas e vice versa, sendo passíveis, nós e as coisas, de sermos transformados uns pelos outros. Esse princípio não é, nem se pretende ser, uma proposta nova, mas lida, de fato, com aspectos bem pouco explorados pelo Ocidente, pois vai contra o vetor de linearidade ao qual estamos habituados – o Ocidente é incapaz de pensar fora das delimitações. Delimitar é a forma mais eficaz de articulação do poder.

Em 1937, Niels Bohr anunciava: “qualquer tentativa de analisar, à maneira habitual da física clássica, a individualidade dos processos atômicos, condicionados pelo quantum de ação, é frustrada pela inevitável interação dos objetos atômicos em exame com os instrumentos de medida indispensáveis para esse fim”. Em outras palavras do próprio físico, é “justamente a impossibilidade de distinguir com clareza o sujeito e o objeto, na introspecção, que proporciona o espaço necessário à manifestação da volição”. Com isso, consolidava-se, no próprio habitat da ciência, o fim da “ciência” como (ainda hoje) a compreendemos. Bohr, atuante de uma área convencionalmente aceita como distante das artes, foi grande em sua poesia das partículas, tornando-se um dos pais da física quântica. Foi discordando dele e de teorias que subjazem às mais recentes descobertas da física, que Einstein pronunciou sua famosa frase: Deus não joga dados.

Aqui contextualizada, essa frase é central no confronto ideológico que tento expor. Deus, entendido como o paradigma hegeliano da razão universal, como o espírito absoluto dando conta da problemática filosófica da permanência nos séculos precedentes, é posto em xeque bem no seio do pensamento científico. Mesmo para Einstein, semeador do processo, era difícil se abrir para todas as possibilidades que se apresentavam. Era um momento de ruptura tão radical que exigia uma nova ergonomia em prol das novas abordagens filosóficas e científicas que surgiam no Ocidente.

Para compreendê-la completamente, a própria estrutura do entendimento exigia uma mudança igualmente radical. A filosofia até então se baseava em categorias como tese e antítese e na nova filosofia das partículas, tese e antítese revelavam-se simultaneamente autênticas e complementares, já que uma mesma entidade podia ser, concomitantemente, contínua e descontínua, verdadeira e falsa, real e irreal. Uma mesma partícula podia apresentar-se em dois lugares ao mesmo tempo, podia sumir e reaparecer em outro lugar antes mesmo que houvesse sumido. Compreendia-se, pela primeira vez na história moderna do Ocidente, que informações contraditórias entre si precisavam ser consideradas igualmente verdadeiras para se compreender a realidade. A física já não podia ser usada como parâmetro restritivo do possível – e o impossível começava a tomar forma.

A história, como o universo, recusava-se a permanecer dentro da linearidade caducante de uma causalidade forçada e se lançava na periculosidade do desconhecido. Deixava de correr numa linha cronológica sucessiva, perdendo-se na abertura infindável do que Bachelard chamou de pedagogia da ambiguidade, fruto desse novo real que se inscrevia num inconstante devir-ser. Mas, apesar dessas revoluções bacanas, tão radicais e plenas de poesia, avançamos realmente muito pouco em nossa possibilidade de sonhá-las – o delírio possível de tais descobertas manteve-se no cinema e nas histórias em quadrinho. Pois, ainda que seus conceitos façam parte de certo senso comum, sobretudo na área de humanas, parece ter resultado num real ainda mais “clássico”.

Mesmo os físicos parecem não ter intimidade com as possibilidades que suas descobertas oferecem. De forma que viemos testemunhando, desde a época dos nossos pré-socráticos quânticos, a possibilidade total de extinção das disciplinas e suas amarras ideológicas em igual proporção em que, institucionalmente, se radicalizam cada vez mais. Um aparelho eletrônico (um celular seria um bom exemplo) é produzido com os conhecimentos mais imediatamente agregados pela física das partículas, mas é consumido segundo os ditames mais rudimentares do sistema de bens de consumo. O potencial altamente libertário da filosofia dos quanta não reverteu os princípios mais opressores da sociedade maquinal.

E não somente isso. Mesmo a percepção dessa tal ambiguidade em nosso presente acentuou-se ao ponto de constituir uma das características da própria contemporaneidade, deixando-se entrever uma espécie de realidade metaepistemológica, i.é.: uma realidade que faz, a todo instante, a sua própria epistemologia, como se o próprio processo pudesse ser domado. Não é difícil ilustrar isso: se, há algum tempo, inventávamos maneiras de encerrar o passado em conceitos estético-históricos como, por exemplo, o barroco, o romantismo ou o modernismo, hoje nos aprimoramos a tal ponto na prospecção virtual da história, revelada nas tentativas estapafúrdias de definição do próprio presente, que é possível encontrar artistas cujas obras se prestam, declaradamente, a tentar comprovar a tal pós-modernidade.

É nesta realidade, a um só tempo, promissora e desesperançosa, que permite conceber um apocalíptico fim da história, na mesma dimensão em que com isso articula outras possíveis histórias, que me lanço ao desafio de sonhar uma didática pelos quanta, segundo a qual esse impasse da história se veria tão infame que não teríamos alternativa que abrirmos mão da própria história. Atentos ao fato de não haver, nos termos da nossa filosofia infinitesimal, um paradigma que permeie as bases de uma verdade, o próprio conceito de história parece discutível. E se, no próprio comportamento das partículas, percebemos não haver diferença efetiva entre futuro e passado (o tempo circula simultaneamente nos dois sentidos), podendo um corpúsculo determinar-se ente somente enquanto constante possibilidade de ser não-ente, podemos nos perguntar muito seriamente sobre o princípio das coisas. Elas teriam uma criação num dado momento de uma linha cronológica de mão única, ligando o passado original ao futuro profético, ou estariam a todo o momento criando-se e recriando-se a si mesmas, a partir de suas permutações com outras coisas – “contaminações” –, numa constante tensão com as diferenças?

No princípio contaminatório, cujos parâmetros são tão imprevisíveis quanto o estado do gato de Schrödinger antes de a caixa ser aberta, desaparece o sentido tradicional de autoria e originalidade, de tempo e espaço. Toda obra – por exemplo, toda obra literária – origina-se a partir de si mesma, enquanto crosta contraplacada da memória de todos os textos: os escritos e os ainda não escritos. A memória, por sua vez, caminha simultaneamente na direção do passado e na do futuro. Em termos efetivos, a única diferença entre essas direções para a memória é que, voltada para o passado, ela se perfaz numa dinâmica constante de esquecimento e lembrança, cujo equilíbrio entre ambos vai sendo regulamentado segundo a configuração das possibilidades futuras. Voltada para o futuro, essa dinâmica da memória se perfaz esquecimento que, através das possibilidades passadas, dá lugar à lembrança, enquanto constante revelação do presente. É assim que, através da progressão temporal, lembramos enquanto realização o que ainda não havia acontecido. Desta feita, nem mesmo um texto “original” escaparia de ser ele mesmo a tradução de um texto jamais escrito. Um texto do repertório clássico, por sua vez, não deixa de ser contaminado pelo texto de um jovem escritor. Toda obra é uma permutação com tudo e, por isso mesmo, sempre uma obra original, pois como diria Heidegger, originária. É a íntima relação com o instante presente que pode originar sempre. Relação com o instante presente tem menos a ver com o momento da confecção da obra do que com o momento em que ela é acionada. Orlando Furioso, portanto, é uma obra original do século XXI à medida que alguém a leia, acionando-a (resignificando-a e atualizando-a) no ato de sua leitura. Nós mesmos somos sempre uma tradução do outro à medida que o resignificamos em nossas palavras e atos. Diante disso, dicotomias rudimentares entre autores canônicos e não-canônicos, gênios e não-gênios, ou mesmo distinções entre prosa e poesia, ficção e realidade ou entre as linguagens artísticas nem seriam mais um problema, uma vez que se anulam como mero simulacro de nossa história recente. Para além da distinção das qualidades externas à obra, é preciso perceber que toda obra é uma possibilidade em aberto – somente por isso ela pode ser adaptada ou traduzida, desdobrando-se em outras obras –, não permitindo, por isso mesmo, o estabelecimento de uma fixação objetiva, logo sua institucionalização. Nessa perspectiva, que desliza por vetores não-hierárquicos, a obra deixa de ser fruto da subjetividade de um autor ou de um leitor para instaurar-se como abertura amparada pela própria inquietação contida nela. Ou seja, é a própria obra, com sua plena possibilidade de contaminação que relê o leitor a partir de sua leitura e vice-versa. Ora, o poético (essa energia no interior de toda obra), nada mais é que a capacidade fundamental e anterior a todas as coisas de pensar através das coisas, e nela permanece tudo o que fazemos de forma não alienada – seja na literatura, na arquitetura, nas artes plásticas, na filosofia ou no simples ato de caminhar pelas ruas ou olhar uma paisagem – resguardando, portanto, a entropia desta indeterminação fundamental em ser-com o leitor. E assim é que essa didática pelos quanta propõe uma crítica feita não por críticos, mas por princípios dados ao leitor pela própria obra, esse a quem ela é dedicada e a quem mais interessa decidir o que será lido – sendo o leitor, portanto, seu único parâmetro. É uma didática libertária onde, sem a intervenção de um crítico ou cânone, todo leitor teria condiçoes de escolher seu próprio “paideuma” e ser inteiro com a Obra.

É obvio que para isso (como em toda fundamentação de uma didática) comecemos pela educação. Ao afirmar que a literatura não precisa de um outro parâmetro além do leitor, me refiro a um leitor “integral”, i.é.: desde muito antes, não subserviente às intitucionalizações e ao sistema de canonizações e, já de antemão, preparado e pleno de uma perspectiva poética do mundo. Nessa interação, que escolho chamar de inteiração, todo leitor já aprenderia a ser inteiro com a obra, mutando e sendo mutado a todo instante, na grande articulação de um uno fundamental que o plenifique em sua constância de possibilidades enquanto ente em constante trasformação-contaminação.

Obviamente, a percepção pré-socrática de que tudo é um (Heráclito), na qual encontramos um grande amparo para nossa didática, não infere a eliminação das diferenças, mas unicamente a radicalização do equilíbrio entre o que é um e outro. Pois que numa didática pelos quanta, as diferenças não são excludentes e as identidades não são niveladoras. As diversas realidades são concomitantes, realidades opostas e contraditórias coabitam, consubstanciam e determinam o real, não por eliminação ou assimilação (o que é próprio de nossa tradição), mas em suas diferenças radicais, tal como a complementaridade, para não enlouquecer diante das partículas, aceita que informações excludentes entre si sejam concomitantemente verdadeiras, sendo, o confronto dessas, a única forma possível de descrever o “objeto” observado. Vale ressaltar, entretanto, que, no âmbito da física, a dualidade onda/partícula determina que a luz se defina – onda ou partícula – a partir do instrumento que se escolhe pra observá-la, unicamente por uma questão narrativa contida na própria natureza de nossos clássicos “instrumentos” e “instruções” de observação. Dificilmente a linguagem científica dá conta da concomitância dessas duas realidades impossíveis e absolutas em um só ente. Quem dá conta disso é a poesia.

Pois, muito mais que representar uma função específica da linguagem, a poesia somente mostra o que a linguagem já é. É nesse espaço de desvelo que a poesia se insere, trazendo ao mundo suas inúmeras possibilidades de realizar-se. A poesia – e aqui não estou falando de poemas, mas da poesia do poema (poesia da poesia) –, gesta, em seu estômago luminoso, a própria luz, em suas infinitas concomitâncias e espectros. Mais: a matéria luminosa da poesia ilumina a própria ficção da luz, fazendo-a luzir no real. E é no luzir real que a luz se ficcionaliza enquanto poesia, passível de ser sonhada pela física e enumerada pela matemática. Real e ficção anulam-se mutuamente na escala do mesmo.

Aliás, os limites impostos entre ficção e realidade talvez seja a maior fraude de nossa tradição filosófica, simulacro epistemológico da vontade de discernir o nós dos outros, amparado pelo julgamento clássico do que é falso e do que é verdadeiro. É, pois, que para a nossa didática não há sequer essa noção. E não se trata de um ponto secundário ou irrelevante, mas fundamental para compreender tal didática, cujo poder é o de colocar o homem frente a questionamentos profundos quanto ao seu sistema ético. O desastre de Chernobyl, a desertificação do mar de Aral e o muro de Berlim servem como exemplos. Esses eventos seriam inverossímeis caso não tivessem, de fato, ocorrido. Parece-nos, então, que a única diferença aceitável entre ficção e realidade é o fato de um determinado episódio ter acontecido ou não. Entretanto, há muito já sabemos que qualquer história, qualquer passado, é prospectivo ao futuro a que se queira chegar e, portanto, segue determinados parâmetros absolutamente ficcionais (a própria ciência na qual qualquer história se baseia é uma ficção dela mesma). Qualquer história é uma especulação a partir de seus vestígios e todo vestígio pode ser conduzido em prol dessa história. Todo passado é uma invenção e todo futuro uma possibilidade, sendo o único dado concreto e sensorial o presente, este tão moldável quanto o sonho. É a ficção (do latim fingere, moldar) que consuma a coisa (res, real). Portanto, toda ficção é real. Essa é a contaminação máxima, aquela em que nos contaminamos do sonho e da morte – esses enigmas.

As partículas atômicas existem para o cientista, antes de tudo, enquanto linguagem, sendo, desde já, uma das linguagens com a qual podemos falar o universo. E sendo a poesia a radical fundação de toda a linguagem, não deixa de ser a poesia, o próprio fundamento da matéria, realizando-a poeticamente, mundo e cotidiano. A esse respeito, o famoso físico Stephen Hawking, ao querer provar o fracasso dos filósofos, comete uma pequena gafe, demonstrando assim o seu próprio fracasso em filosofia. Na última página do livro Uma breve história do tempo, ele cita a frase na qual Wittgenstein afirma que a única tarefa que sobrou para a filosofia foi a análise da linguagem, ao que acrescenta um comentário pessoal: que decadência da grande tradição de filosofia de Aristóteles e Kant! Hawking aposta na decadência da filosofia, uma vez que ela não teria como acompanhar o refinado grau de aprofundamento e especialização das ciências no mundo moderno. Talvez, sua falha aqui seja não perceber a ironia da frase e seu tangenciamento para uma questão mais profunda: a conclusão de que qualquer outro debate além daquele em torno da linguagem é desnecessário. Eis então a própria ciência indo ao encontro da frase de Wittgenstein, uma vez que a mecânica quântica ou a astrofísica se diferenciam das disciplinas clássicas justamente por serem naturalmente um constante diálogo com o próprio enunciado no qual se edificam, antes de se basearem em um pressuposto já dado e identificado à Verdade clássica. O importante não são as respostas que a ciência possa trazer, mas as dúvidas que a linguagem sempre tenha colocado. A física moderna nada mais é que fruto de um delírio das questões impostas pela linguagem, um deixar-se entrever, pela linguagem, o próprio mundo, um delírio tão absurdo e autêntico como o mais fragmentário dos sonhos. As disciplinas, frágeis construções sobre a sólida base da linguagem, entram em extinção a partir do momento em que a linguagem passa a olhar para si mesma. E é aí que pouco importa o refinado grau de especialização da ciência, mas a noção de que ela surge por este aspecto que é o poético, e que é uno.

Diante dessa série de supressões de relações lineares entre passado e futuro, um e outro, ficção e realidade, ou qualquer outra relação de exclusão do outro-mesmo, percebemos que não é possível qualquer realização fora da experiência da totalidade. Mesmo as realizações supostamente estanques de nosso mundo, não passam da parte visível de uma totalidade que a todo instante se oculta e se mostra. É no instante em que a totalidade mágica do mundo se evidencia – alguns chamariam isso de estar inspirado – que tencionamos radicar enquanto educadores quânticos, não o privando, obviamente, de seu ocultamento – pois aí, apenas inverteríamos a relação – mas nos levando ao amplexo de sua dinâmica. É esse estado absoluto em sua absoluta complexidade que gostaríamos de trazer para nosso leitor de coisas – nas coisas. E para isso basta, enquanto educadores, simplesmente mudar a nossa maneira de compreendermos o real e enxergarmos o quanto tudo já nos compreende a nós mesmos em sua realidade real. É sendo um leitor inteiro, em sua inteiração poética com o mundo, que podemos torná-lo o mundo que já é.

Somando-se a outras ações, futuros investimentos em termos de reflexão e novas dinâmicas em relação ao real e à literatura, o mundo retornará ainda outra vez para o ecoambiente fundamental de interação entre homem e natureza. O progressivo desaparecimento das disciplinas dará lugar às interações quânticas e suas maravilhosas realizações de mundo – como poesia máxima da linguagem: poesia da poesia. Eis o mundo ritualizando-se na palavra mais uma vez, pois todo esquecimento é fiel ao esquecido:

O que se oculta nunca desaparece e surge no instante preciso em que precisa ser lembrado.

Márcio-André, Coimbra, 2009

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