Uma estética da complexidade, por E. M. de Melo e Castro

E. M. de Melo e Castro, um dos grandes nomes da poesia portuguesa, acaba de publicar, no Portal Cronopios, um ensaio sobre minha performance MULTITUBETEXTURA. O texto faz parte de artigo que estará na próxima edição da Revista "O Eixo e a Roda", da UFMG. Eis o texto:




Falar numa estética da complexidade pode parecer a muitos talvez problemático, embora as orquestras sinfônicas, que podem chegar a ter mais de cem instrumentos musicais tocando simultaneamente uma sinfonia de Beethoven ou de Mahler, não nos causem qualquer estranheza. E uma autopista com 4, 5 ou 6 faixas de rodagem em cada sentido, repleta de automóveis em movimento, em dois sentidos opostos, é uma situação banal do quotidiano, que faria exultar de satisfação e de incredibilidade qualquer artista futurista de há cem anos atrás. Para nós, tal situação é apenas mais uma forma de constrangimento e um sinal do perigo e de efeito de desastre, que a toda hora nos espreita nas grandes metrópoles. Mas se fotografarmos ou filmarmos essas autopistas, de dia ou de noite, de um ponto alto, de avião ou helicóptero, teremos belíssimas imagens da complexidade móvel. Imagens, isto é, sinais esteticamente ativos e prazerosos, das estruturas complexas em que vivemos. (Este efeito tem sido muito explorado em algumas telenovelas). Tais imagens, que são naturalmente ícones, têm também a capacidade de agir sobre os nossos sentidos como índices sensíveis de fruição, tal como agem sobre nós as chamadas “obras de arte”! E essas imagens têm tais capacidades (ditas estéticas), justamente porque foram obtidas através de dispositivos tecnológicos comandados por homens que tinham uma intenção: obter imagens capazes de nos impressionar e provocar prazer, tal como todos os artistas sempre tiveram, com os instrumentos e as tecnologias do seu tempo, desde a pré-história até hoje! Só que hoje a situação é sinestésica e por isso complexa, podendo ser globalmente difundida!


John Cage disse (numa entrevista dada, tendo um gato na mão, numa janela aberta sobre as ruas de New York, por onde entravam todos os ruídos do tráfego intenso) que para ele essa paisagem visual-sonora bastava como fato sensorial sinestésico e que certamente o gato sabia tudo sobre isso!... (citação feita de cor). Por isso uma estética da complexidade é, não só possível, como necessária para entendermos mais profunda e eficazmente a enorme variedade de imagens com que os dispositivos tecnológicos nos vêm cada vez mais capacitando e transformando a nossa sensibilidade e percepção. Mas é preciso reprocessarmos o conhecimento filosófico e teórico do passado, numa perspectiva múltipla e probabilística, observando fenomenologicamente com olhos-outros, tanto o que vemos e sentimos, como o que nos é feito ver e sentir pelos equipamentos produtores de imagens de que dispomos e cada vez mais, nos seduzem e utilizamos. Isto porque as imagens-outras que hoje produzimos, são outras e diferentes, mas são imagens, cada vez mais outras-diferentes e autônomas, cada vez mais capazes de nos surpreender, obrigando-nos a persegui-las e a questionarmo-nos sobre as nossas próprias capacidades de invenção, lançando-nos freqüentes vezes em puras situações de abdução!


Parece óbvio dizer que não existe uma só maneira de encarar a complexidade e de com ela trabalhar inventivamente. Porque se só houvesse uma, não existiria complexidade. E o nosso “agora” é complexo. Dizer isto tem o sabor de uma tautologia ou de uma verdade que ninguém se lembraria já de contestar. É numa encruzilhada sensorial, cheia de armadilhas, e por isso amplamente sedutora, que as performances multimídia que Márcio-André tem recentemente realizado vêm ao nosso encontro simultaneamente como produtos estéticos complexos e intuições poéticas inusitadas, dados a partir de elementos díspares, muitas vezes, do nosso contemporâneo dia a dia: vídeos captados no YouTube ou realizados para outros fins. Esses elementos visuais são aleatória ou programadamente sobrepostos e sintetizados, num clima pansinestésico totalizante, não se sabe bem de quê. É esse o encanto e o novo que essas performances nos oferecem pelo tratamento das imagens múltiplas e das sonoridades casuais eletronicamente tratadas (mas não sincronizadas) e pela presença surpreendente de um autor-executante de violino eletrônico, assim como de atores ou bailarinos que são sombras fantasmáticas de uma talvez já desnecessária presença humana.


Os ingredientes usados no coquetel multimídia Multitubetextura, em sua recente apresentação em São Paulo, na Casa das Rosas (18 de janeiro de 2011), foram assim descritos no programa:


Márcio-André é reconhecido internacionalmente por explorar a partir doimproviso, as possibilidades da fala, libertando a poesia dos limites da leitura eextrapolando a fronteira com a música experimental. Nesse espetáculo,projeções simultâneas de vídeos escolhidos no YouTube serão manipuladas eprocessadas em tempo real...


Mas isto não é tudo. O que de fato aconteceu foi a improvisação principalmente feita num violino eletrônico, de que Márcio é exímio executante, sendo o som processado por um computador através do qual foi comandada toda a performance. Os vídeos, criteriosamente escolhidos no YouTube, segundo temas pré-programados, foram apresentados em imagem múltipla em 2 grupos que variavam entre 9 e 12 vídeos simultâneos... porque na sala não havia espaço para mais...


As peças apresentadas foram:


1. poets
2. trains
3. indivisível
4. soundscapes
5. minimal body percussion
6. Quatro cantos do caos - 4º canto


A primeira peça, POETAS, era constituída por vídeos dos seguintes 9 poetas,todos falando simultaneamente, dizendo, cada um, o seu discurso:


Haroldo de Campos / Octávio Paz / Bernard Heidsieck
Anne Sexton / Ezra Pound / Stepehn Rodefer
Paulo Leminski / Gozalo Rojas / Hilda Hilst


Mas todos estes poetas podem ser substituídos por outros, conforme o momento ou o desejo do autor. O poema sonoro resulta da sobreposição das vozes e das intervenções musicais ou verbais ou mesmo performáticas do executante musical ou de outras pessoas que o desejarem.


O poema TRENS é composto por nove vídeos, nos quais se vê a mesma perspectiva dos trilhos na deslocação de diferentes trens, cada um com a sua velocidade, indo em diversas direções, saindo e entrando das estações ou em marcha pelo campo ou pelas cidades. As imagens múltiplas e simultâneas, mas divergentes, provocam efeitos sinestésicos de alucinação que são reforçados pelas intervenções musicais ou vocais improvisadas.


Noutro destes poemas, PERCUSSÃO CORPÓREA MINIMAL, o mesmo vídeo de um bailarino percutindo o seu corpo com as mãos, de um modo rítmico esquemático, é exposta em nove imagens dessincronizadas produzindo um efeito de multiplicação, esteticamente complexo.


Estas pequenas descrições servem apenas para enfatizar a importância perceptiva e poética da simultânea multiplicidade das imagens visuais/corporais/vocais/musicais/performáticas/ etc quando integradas numa coerência de invenção em que o acaso é o rigoroso mestre.



Quase sempre o autor realiza pequenos filmes das suas performances que coloca no YouTube, não só registrando as improvisações sonoras e visuais, como transformando-as em objetos de telearte que podem ser livremente acessados por um número imprevisível de navegadores na Internet. Uma rápida busca no YouTube revelará que existem algumas dezenas de vídeos de poesia sonora-visual ou de performances de Márcio-André que são exemplo dessa mesma já referida telearte. Este fator é muito importante porque assim se alarga o número de fruidores da poesia multimídia, numa época em que o fenômeno poético está em transformação quanto a suportes e meios. A poesia sinestésica de Márcio-André deve ser assim entendida como uma válida resposta aos arautos nefastos do fim da poesia.


Na caracterização deste forma de arte, alguns conceitos usados, como acaso,sinestesia e performance, penso necessitarem ser melhor esclarecidos quanto ao sentido do seu uso em referência aos trabalhos de Márcio-André. Entre a estrutura determinista de um romance convencional, ou a partitura de uma ópera e o barroquismo de uma obra musical aberta , ou de uma peça de Samuel Beckett conceptualmente indeterminada, onde se podem situar esteticamente as performances de Márcio-André? Creio que a resposta se situa numa região onde a noção de acaso seja preponderante. Mas o que pode ser o acaso na estrutura de uma obra de arte onde o meio em que realiza e a sua intenção comunicacional são determinantes? 


Numa conjuntura de “estética relacional” que “consiste em julgar as obras de arte em função das relações inter-humanas que elas figuram, produzem ou criam” (Nicolas Bourriaud, Estética Relacional, Martins Fontes, SP 2009) será preciso distinguir a complexidade de, por exemplo, uma peça de teatro musical e as performances de Márcio-André, em que os vários elementos constitutivos são muito semelhantes, tais como música, representação teatral e corporal, iluminação cênica, cenários, voz humana falada e cantada e até a coordenação informatizada. Entretanto, na peça de teatro tudo está previsto objetivamente e ensaiado até mesmo a interpretação dos atores. Nas performances de Márcio-André, os elementos de semelhante natureza são montados e postos em relação de um modo aleatório, sem outra coordenação que a subjetividade dos intérpretes e o manuseamento dos dispositivos informáticos de luz, texto, imagem e som, apenas muitas vezes minimamente programados. Estamos então perante uma noção do caos intuitivo, que nada tem a ver com o caos matemático e das ciências físicas. Mas que também não é a improvisação possível, dentro de certos parâmetros, da música barroca. Tem muito mais a ver com as relações inter-humanas que a própria execução e atuação geram, e mesmo a interação com o público pode produzir variações nas apresentações vivas.


Já o caso das apresentações na internet, estando as atuações gravadas, é gerado um diferente tipo de relações inter-humanas, pois o que está em causa é a larga difusão não programada a vastas audiências, em indeterminados locais do planeta Terra e em tempos incontroláveis. Tais relações virtualizam-se e são apenas potencialmente caóticas. São, portanto, uma nova forma de telearte, em que até a existência do autor se desmaterializa e fica problemática.


Também a própria noção de performance se desmaterializa e se poli-situa em todos os espaços possíveis, dos quais o próprio autor nunca terá conhecimento completo, tornando-se a performance, nesse aspecto, semelhante a um livro (que pode estar em qualquer lugar), mas com uma tiragem ilimitada e uma intervenção e relacionamento poli-social totalmente abertos, contrariamente às performances do final do século XX que eram acontecimentos fechados, ainda que conceptualmente abertos e aptos para a intervenção política. Sabemos hoje que esta intervenção é também possível pela Internet, podendo os conteúdos políticos e ideológicos ser realizados pelos novos meios tecnológicos através da qualidade estética específica e que lhes é própria. Penso ser este o caso das performances sinestésicas de Márcio-André, que são sinestésicas porque colocam em evidência as potencialidades do funcionamento simultâneo de todos os nossos sentidos. E não há nada mais subversivo e desmitificador que o funcionamento simultâneo e caótico de todos os sentidos do nosso corpo humano.


* * *
  
E. M. de Melo e Castro é poeta, ensaísta e crítico da poesia experimental contemporânea. É um dos líderes da poesia experimental portuguesa, pesquisador, escritor e engenheiro têxtil.

0 comentários:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails