A poesia rara de Karinna Gulias


Se você não for uma pessoa investigativa ou não tiver um pouquinho de sorte, dificilmente terá ouvido falar em Karinna Alves Gulias. Não é uma poeta que está “na moda” ou que tenha aparecido nos jornais nas últimas semanas, apesar do grande destaque que se tem dado aos novíssimos autores. Ela mesma não faz muita questão disso e evita qualquer movimento no sentido de chamar demasiada atenção para si, tendo sempre preferido manter-se fora do burburinho. Entretanto, os poucos privilegiados que conhecem o seu trabalho são unânimes em reconhecê-la como uma das mais interessantes poetas surgidas nestes últimos anos.

Pelo seu caráter reservado, Karinna frequenta pouco as redes sociais e é mesmo estranha aos bons jovens escritores de agora. Vivendo atualmente no Reino Unido, a única graça que dá de sua poesia é através do blog Beggar’s Body Art, que ela atualiza com suas mais recentes composições – muitas (e cada vez mais) em inglês. Seu primeiro e único livro “Maria da Graça, Terra dos nomes perdidos” (Selo Orpheu, Editora Multifoco, Rio de Janeiro) teve tiragem limitada e foi distribuída a amigos próximos (não está nas livrarias, mas pode ser encomendado pelo site da editora). 

Lançado há dois anos, inaugurando positivamente a década de 2010, o livro é resultado da mais requintada ourivesaria poética. Valendo-se de uma narrativa mítica, a obra nos faz acompanhar a história de Poca Sombra e seu filho, chamado simplesmente de Filho, para construir um épico de fundação dos subúrbios do Rio de Janeiro. O livro surpreende pelo que possui de original e inexplorado, sem deixar de ter o poder de tocar sensivelmente (e, ao final, muito profundamente) nos medos e aspirações mais radicais. Ali, Maria da Graça é uma reinvenção poética do decadente e nada glamouroso bairro carioca; tão real quanto o imaginário que tomava a poeta quando morava nos subúrbios do Rio e diariamente passava pelo local. Karinna conhece como ninguém o poder encantatório das palavras e com seu livro aponta, com uma rara vocação à precisão da escrita, um caminho inédito na literatura brasileira - ainda que com fortes raízes na tradição do país - e verdadeiramente difícil para uma autora ainda muito jovem.

É fascinante ver uma poeta com menos de trinta anos imprimindo tamanha força, competência e complexidade arquitetônica em sua composição, arriscando-se na confecção de uma escrita ultratrabalhada, com a qual, valendo-se da serenidade de uma monja budista, desenha uma caligrafia de metáforas radicais e contrastantes

Karinna foi uma das fundadoras da editora Confraria do Vento e foi colaboradora ativa da Revista Confraria em seus últimos anos. Tenho muito orgulho de ter estado na aurora da escrita dessa moça, em uma época em que tanto ela quanto eu vivíamos no Rio e pudemos trocar experiências. Quem acompanha seu blog sabe que sua escrita continua crescendo e sabe que, a seu tempo, mas com seguríssima certeza, ouviremos muito falar dela. Quem viver verá.

Se tudo o que eu disse não parece convincente, confira abaixo, a primeira parte de seu livro.



[Torre-olho]

Nos atos em que nossa terra espera grandezas de líder, ordenados, verticalismos, emque o sagrado purifica a palavra humana e implanta cidades, habitações de seres autônomos com seus caminhos postiços. Vigente. E da mulher, conceito e instituição moral: aquela que pronuncia a defesa da palavra presenterito. Planta datual guerra e comércio. Nas leituras emque tudo está na verdade daqueles que pensam na linha da história romântica, ideológica: Descascar.
Nos atos feitos pelo nó da justiça da igualdade da liberdade. Os olhos encaram o objeto dismisso. Predomínio das coisas à imagem do vento: desmitificar de nomes e terras: Vento. Uno. Sobre aquelas que gestam: as coisas, a mulher, as mulheres, a terra; irremediavelmente iguais à vista. Conceitos puros presenteritos. Do subjeto olho que age livre. Conhecimento ativo: Descascar.
Conflito: Não está tudo no olho de um.
A língua se faz com dois. O lugar: a guerra e a gesta.


Parte I – A Primeira História

[O que não é]

Uma mãe feita para criar bois [espelhados],
administrar a base da terra para a permanência.
Fez um filho com a massa negra da noite.

Uma mãe feita para criar bois [gigantes]
e aumentar a sua sombra.

Acendeu velas
para o dia em que seria dona de cria.
Com o movimento,
seu nome mudou-se para outra casa;
pertence a outro lugar. A outro ofício.

Na mudança:
— De todos os rios por que passou,
ficou-lhes terços de seu cabelo, agora branco,
como espuma de mar.

À noite os rios a visitavam e derramavam
transparência em seu peito. De seu ventre, então,
nasceram cabelos de estrelas e espumas de mar. —

Mais uma vez seu nome foi mudado de casa,
                                                   até a vontade se retrair.
Seus cabelos caíram e o nome passou a ser:
poca sombra
e por fim
Nasceu um menino.




[Êxodo]

Novas sementes e flores cresceram;
o céu não era mais o velho, de lá nasciam pássaros
revelados a apenas um olho.
Maria da Graça,
antiga cidadela de grumo, aquática,
aterrada por trens.

***

De um lado ao outro, em Maria da Graça,
as pessoas atravessavam trens parados — homens ajudavam moças
e crianças [todos sem nomes.
Os trens brotavam da areia e propunham trilhos à terra.

***

Poca Sombra, nascida dentre nomes —
Era apelidada a mãe. Expulsa para a terra do comboio.

***


E as mães foram feitas para serem outra.




[Sistema de aço]

Partitura de aço, não ossos.
Para cada vida, um aparelho de imortalidade:
o ofício.

***

Eu comeria deus todo dia,
no olho das plantas; as plantas.
Poca Sombra não conhece a folha verde:
esquece que um dragão se cria na pilha de folhas secas:
avermelhando.

Ela sempre esquece novos pensamentos.




[Maria da Graça]

A encosta repetia os nomes perdidos,
[Muros sempre se erguem na pedra do sapo e no jacarezinho... –
o balbucio de palavras carregadas de vento:
                     Caíam duras como imagem no chão. 
                     E delas brotavam mais e mais trens.

Ferradura logística;
cargas de banha e sebo de cavalos e corpos.
                     Toda a banha se transforma em ferro e giz.

***

Poca Sombra não mais se sacrifica.
Poca Sombra chora
e a noite limpa seus olhos com desejos;
agora volta a ter destino. Já fadada a viver sem nome,
                                             na terra dos sem nome.
— Abandona Poca Sombra e cristaliza-se mãe.


***

Ninguém era de saber dela, nem antes, nem agora.
Todo seu movimento de eregir-se ficou para deus,
que passou a dever-lhe um nome.
Sem ter seu nome de volta,
comeu os dentes de leite de seu filho,
e virou Filho.

(...)


Parte III - Atalho

Filho pulou todos os anos de infantilidade.
As vias do trem eram seu caminho mais curto.
Não ouviu fábulas; nasceu homem.
Um homem sem efabulações é um senhor da dor.
A maldade lhe cai bem.

***

poca sombra, ainda quando via seu nome nascer,
imaginava o caminho de seu filho. Sempre a andar
sobre trilhos vazios. O trem vinha de longe.
O caminho de Filho era grandioso. Sem dor.
Mas o trem a iludiu.
Seu barulho, quando passava, que era grande.





Mais em beggarsbodyart.blogspot.com

Crítica de Marcelo Ariel ao livro "Maria da graça, terra dos nomes perdidos": http://www.acextrapolar.com/blog/?p=2254

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