Monsanto : poema inédito

Abaixo, um dos poemas que serão publicados em livro pelo selo Dulcinéia Catadora, de São Paulo, sob a coordenação de Lucia e Carlos Pessoa Rosa. Esse poema foi escrito durante (e depois de) minha estadia na aldeia histórica de Monsanto, na qual vivi por quase quatro meses. A primeira parte já foi publicada no jornal Público, de Portugal, porém o resto do poema é ainda inédito. Espero que gostem.



MONSANTO

1

toda cidade é esboço dela mesma
ou labirinto móvel para cães

e de tanto haver gente sempre nos adequamos a ser outro:
a cidade contém dentro três outras cidades
que nunca se tocam

e somatizam nos habitantes até deformá-los

mas o pôr do sol é sempre esse
desde o principio do sol e do estado das coisas

o pôr do sol que se ama como latão velho
e tudo o mais é variação de pedra

nesta aldeia onde até o deus é de granito
e tem sonhos de pedra

com fêmeas mortais num jardim de areia e pedra

convém fugir dela antes que a velhice chegue
pois também as coisas perecem mais rápido do que percebemos

aqui cada dia é um dia
é preciso partir antes que chegue outro

e é triste notar que nada permanece de nosso
antes mesmo que não se esteja mais aqui


2

a última estrela da noite vingou na primeira luz da aldeia

foi quando ela veio atravessando os pomares
e as primeiras flores em seu vestido azul
e sentou-se ao meu lado no meio fio
e esperamos amanhecer


3

este é um templo
como é templo o colar de dentes
desta que agora é minha amante

sua boca que certa vez beijou um folião
no carnaval do engenho novo

desde então tem escama nos dentes
pérolas nos dentes dentes nos dentes

seu corpo é templo por dentro e à volta
maior que toda ela enorme nela
e circunda sua cabeça como um músculo

um templo só pode ser compreendido
de dentro do templo

é no templo que está guardado
esse amor incondicional

somos templo um do outro


4

a paisagem descola do horizonte

nós ao pé da fonte comendo tangerinas frescas
enquanto a lua amadurece num galho baixo

no frio as palavras ganhando massa
na bruma-flor do seu hálito

simples é pensar nos caminhos que partem desta aldeia
esses trens europeus com trilhos serenos

não foram em vão os favores do vento no cabelo das colegiais
algumas ternas outras safadas

para uma casa ilhada na névoa
seus dois olhos-alimento como gomos fatiados

e esse dia terá sido uma lembrança boa
dentro de um dia bom

não supomos que tão logo seríamos estranhos um ao outro
e a solidão que tínhamos um no outro
terá se tornado mera ausência


5

um dia dançamos no saguão de um hotel em buenos aires
um dia cuidei de sua costela quebrada

mas irajá não cabia em monsanto
icaraí ou realengo não cabiam
nossas imagens não cabiam na paisagem

quando ela se foi largou os dias
sem ninguém para recordá-los

um dia fêmea uma dia mãe
um dia morta


6

não se fala da memória estando na memória
dela só sabemos seu nome

ela não existe fora de si
como o tempo não se move fora dela:

a memória só comprova a si própria

equidistante na ida e no retorno
esse caminho do qual nos separamos juntos

toda distancia real sonhada através dos mapas

estamos na memória como estamos na casa
e nela habitamos sós

monsanto foi o fim de sua própria história
desacontecida conforme contada

suas ruas semi-apagadas num sonho já velho
lá onde ainda podem ser caminhadas


Márcio-André, in: CAZAS. São Paulo: Dulcinéia catadora, 2011



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5 comentários:

Flávio Corrêa de Mello disse...

Olá Márcio, desde a leitura do Intradoxos
que sinto uma aproximação poética contigo.
Não se expressa no mesmo recorte de feitura,
de artifício, mas há uma similaridade de tonalidade.
Esta similaridade talvez condiga com nosso habitar
no tempo contemporâneo e de querer permutar com os lugares
e suas arquiteturas invisíveis.
Escrevi o Poemas Suíços em 2004
e a ação deslocamento geográfico para produzir
e sentir a poesia me era muito importante,
em todas sensorialidades do criar os poemas que constam daquele livro
(sem entrar no mérito do livro, pois hoje,
minha exigência não dignaria a publicação de alguns poemas, mas fazer o que... faz parte).
O mesmo se passa com o Rio Movediço que escrevo há pelo menos cinco anos.
Não tenho a mesma dinamicidade produtiva que você e quando li este poema,
pensei: taí é um poema que eu teria escrito,
é uma abordagem de sintaxe e de semântica que dialogo bem.
Um verso ficou matutando na minha cabeça...

"a cidade contém dentro três outras cidadesque nunca se tocam
e somatizam nos habitantes até deformá-los"

Um abraço cordial e sincero,

romério rômulo disse...

a embocadura mudou ou eu estou enganado?
muito bom, m-andré.
romério

Anônimo disse...

mto bonito, gruda na alma. bjsss

Márcio-André disse...

Caros, muito obrigado pela leitura.
@Flávio, sim estamos junto na mesma empreitada cosmopoética, argonautas de uma mesma poesia da nossa era. Valeu por compartilhar suas impressões. Espero que o Rio (movediço) desague logo em livro, meu caro. @Romério, compreendo a sua afirmação. De fato, esse poema é bem diferente dos outros, mais direto, narrativo e lírico (ainda que eu ache que jamais abandone o lirismo) e confessional até, mas ainda acho que está no ambito do meu universo da exploração do verbo por dentro dele mesmo. Pensando bem, a palavra que vc usou (embocadura) descreve bem o que se passa: o que muda não é o instrumento, mas a "técnica" ao tocá-lo. Obrigado, meu caro, pela sua leitura precisa e conhecedora de quem tb tá na chuva do radicalismo da palavra. @Andréa, as almas são assim: aderentes : )

Fábio Romeiro Gullo disse...

Márcio, releio e me contento com a (re)descoberta de q tu ainda acredita em metáforas, algumas tão belas neste poema tão belo. Símiles, e + ainda metáforas, reterão p sempre o poder de identificação das coisas nas coisas de q tu fala na Didádica pelos quanta.

Grande abraço,

Fábio Gullo

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