Charles Cros em português


Traduzi esses fragentos de Charles Cros a pedido de Sophie Lewis, crítica britânica e tradutora do poeta para o inglês, por ocasião do último Cidade aTravessa (abril de 2011) no Rio, para acompanhar sua leitura do original em francês. Não foi uma tradução muito acurada, devido ao pouco tempo que eu dispunha (fico devendo uma revisão mais precisa), entretanto já dá para ter uma idéia do trabalho tão interessante desse poeta do século XIX. 



I. Espanto

No meio da noite, um sonho. Uma estação ferroviária. Funcionários ostentam caracteres cabalísticos em seus quepes administrativos. Vagões de carga carregados de garrafões de ferro fundido. Os carrinhos de mão passam com pacotes que são arrumados nos vagões do trem. Uma voz de supervisor grita: Aos cuidados do Sr. Igitur, destinação: lua! Um funcionário vem e cola uma etiqueta no pacote designado - um garrafão semelhante àqueles dos vagões de carga. E após a pesagem na balança, embarcamos. O apito, afiado, vertiginoso e prolongado, anuncia a partida.
Despertar repentino. O apito termina como o miado de um gato. O Sr. Igitur se lança, estoura o vidro e mergulha seu olhar no azul escuro onde plaina o rosto zombeteiro da lua.


II. a vaidade submarina

Anfitrite rosa e loira passa com sua corte em um distante glauco, sob as águas dos mares do sul. Como as ninfas parisienses que vão à floresta, ela própria conduz sua concha de molusco, delicado coupé esmaltado em negro luzidio, nacarado de azul.
A bela deixa os cabelos à brisa líquida e salgada. As pálpebras serram-se à metade e suas narinas rosadas se dilatam de prazer pelo passeio suave.
Com que arrogância seus belos braços se estendem e alçam as rédeas, finas algas verdes, dos dois dragões-marinhos vestidos de castanho-claro! É o inesperado absurdo feminino, desastroso e adorável, mais vaidosa dos tecidos comprados que pela alva curva de seu seio, mais orgulhosa pela linhagem de sua nobre montaria que pela transparência de sua própria íris.
Ela esperou que surgisse uma reunião de caridade, onde nereides fazem doações, escoltadas por entre a plebe por tritões engomados em seus trajes cerimoniais, e onde as sereias devem ser ouvidas em favor dos conjuntos habitacionais que compõem o coral.
Ela chegará atrasada, um pouco de propósito, para fazer uma entrada espetacular no meio do discurso oficial do Sr. Proteus, organizador zeloso, mas chato de se ouvir.
Ela chegará tarde, porque, feliz em poder ser vista, mesmo pelos mais humildes cidadãos das águas, ela empinará seus dragões do mar e os fará bater os cascos no solo, fingindo não poder domá-los.
A beneficência não é, afinal, encantar gratuitamente os olhos de tantas pobres pessoas?

III. O navio-piano

O navio corta com velocidade impressionante o oceano da fantasia, impulsionado pelo vigoroso esforço dos remadores, escravos de várias raças imaginárias.
Imaginárias, uma vez que seus perfis são todos inesperados, uma vez que seus torsos nus são cores raras ou impossíveis em raças reais.
Há verdes, azuis, carmins, vermelhos, laranjas, amarelos, como em pinturas egípcias.
O centro do navio é um estrado levantado e sobre o estrado um piano de cauda.
Uma mulher, a rainha da ficção, está sentada diante do teclado. Sob seus dedos róseos, o instrumento emite sons aveludados e poderosos que cobrem o rumor das vagas e os suspiros da força dos homens.
O oceano de fantasia é domesticado, nenhuma onda será suficientemente ousada para estragar a madeira do piano, obra prima da carpintaria em pau-rosa cintilante, nem para molhar o feltro dos martelos ou enferrujar as cordas de aço.
A sinfonia impõe a rota aos remadores e timoneiro.
Por qual caminho? e a qual porto ela nos levará? Remadores não sabem absolutamente nada, nem mesmo o timoneiro. Mas eles vão para o oceano da fantasia, sempre em frente, sempre corajosos.
Velas, avançar, avançar! Grita a rainha da ficção em sua sinfonia sem fim. Cada milha percorrida é felicidade conquistada, uma vez que se seguir o objetivo supremo e inefável, é aproximar-se do infinito inacessível.
Avante, avante, avante!

Charles Cros
tradução de Márcio-André




Eis o original:



Sur trois aquatintes


I. Effarement

Au milieu de la nuit, un rêve. Une gare de chemin de fer. Des employés portant des caractères cabalistiques sur leurs casquettes administratives. Des wagons à clairevoie chargés de dames-jeannes en fer battu. Les brouettes ferrées roulent avec des colis qu'on arrime dans les voitures du train.
Une voix de sous-chef crie: La raison de M. Igitur, à destination de la lune! Un manoeuvre vient et appose une étiquette sur le colis désigné - une dame-jeanne semblable à celles des wagons à claire-voie. Et, après la pesée à la bascule, on embarque. Le coup de sifflet du départ résonne, aigu, vertigineux et prolongé.
Réveil subit, Le coup de sifflet se termine en miaulement de chat de gouttière. M. Igitur s'élance, crève la vitre et plonge son regard dans le bleu sombre où plane la face narquoise de la lune.


II. Vanité sous-marine

Amphitrite rose et blonde passe avec sa suite dans un lointain glauque, sous l'eau de la mer du sud.
Comme les nymphes parisiennes qui vont au bois, elle conduit elle-même sa coquille de moule, délicieux coupé verni en noir luisant, rechampi d'azur et de nacre.
La belle abandonne ses cheveux à la brise liquide et salée. Ses paupières se ferment à demi et ses narines rosées se dilatent de plaisir en cette course aventureuse.
Avec quelle arrogance ses beaux bras s'allongent et tendent les rênes, minces algues vertes, des deux hippocampes fougueux à la robe alezane claire!
C'est l'imprévue absurdité féminine, désastreuse et adorable, plus fière des étoffes achetées que des blanches courbures de son sein, plus orgueilleuse de la pure généalogie de son attelage que de la transparence de ses prunelles.
Elle est attendue à quelque réunion de bienfaisance où des Néréïdes font la quête, escortées au milieu de la foule par des tritons empesés dans leur faux-col de cérémonie, et où les sirènes doivent se faire entendre au profit des cités ouvrières qui fabriquent le corail.
Elle arrivera en retard, un peu exprès, pour faire une entrée à sensation au milieu du discours officiel de M. Protée, organisateur zélé mais ennuyeux à entendre.
Elle arrivera en retard, car, heureuse d'être regardée, même par les plus humbles citoyens aquatiques, elle retient ses fringants hippocampes et les fait piaffer sur place, feignant de ne pouvoir obtenir qu'ils avancent.
N'est-ce pas d'ailleurs de la bienfaisance que de charmer gratuitement les yeux de tant de pauvres gens?


III. Le vaisseau-piano

Le vaisseau file avec une vitesse éblouissante sur l'océan de la fantaisie,
Entraîné par les vigoureux efforts des rameurs, esclaves de diverses races imaginaires.
Imaginaires, puisque leurs profils sont tous inattendus, puisque leurs torses nus sont de couleurs rares ou impossibles chez les races réelles.
Il y en a de verts, de bleus, de rouge-carmin, d'orangés, de jaunes, de vermillons, comme sur les peintures murales égyptiennes.
Au milieu du vaisseau est une estrade surélevée et sur l'estrade un très long piano à queue.
Une femme, la Reine des fictions, est assise devant le clavier. Sous ses doigts roses, l'instrument rend des sons veloutés et puissants qui couvrent le chuchotement des vagues et les soupirs de force des rameurs.
L'océan de la fantaisie est dompté, aucune vague n'en sera assez audacieuse pour gâter le dehors du piano, chef-d'oeuvre d'ébénisterie en palissandre miroitant, ni pour mouiller le feutre des marteaux et rouiller l'acier des cordes.
La symphonie dit la route aux rameurs et au timonier.
Quelle route? et à quel port conduit-elle? Les rameurs n'en savent trop rien, ni le timonier. Mais ils vont, sur l'océan de la fantaisie, toujours en avant, toujours plus courageux.
Voguer, en avant, en avant! la Reine de la fiction le dit en sa symphonie sans fin. Chaque mille parcouru est du bonheur conquis, puisque c'est s'approcher du but suprême et ineffable, fût-il à l'infini inaccessible.
En avant, en avant, en avant

0 comentários:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails