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Na performance "Sonho que somos iguais", apresentada na 16ª edição da Bienal Internacional de Arte de Cerveira, em 2011, o artista português Nuno Oliveira construiu um galinheiro no qual viria a dividir com sete galinhas pelos três dias do evento. Apesar da preocupação do público, a convivência foi harmônica e não houve maiores incidentes físicos – para as galinhas, claro. A dimensão imediatamente política da obra é clara, mas ela é também emblemática do talvez maior impasse da contemporaneidade, ainda que tal impasse não seja tão evidente, e que é com igual dimensão a problemática da arte hoje: a crescente e ininterrupta institucionalização formal da realidade e a sistemática transformação de tudo o que nela se dá em produto. A obra acaba sendo um grande manifesto do que a performance também teria para nos oferecer como solução. Porque, ao contrário da Cicciolina de Jeff Koons ou mesmo das borboletas de Damien Hirst, as galinhas em questão não podem ser compradas na Christie´s por milhões de libras. E mesmo que comprassem o galinheiro ou as galinhas, não estariam comprando a obra, no máximo adquirindo um produto por mero fetiche. As sete galinhas que compartiram parte de una profunda existência com um artista sedado com ansiolíticos não servem de nada para nós (talvez para serem comidas, se o artista assim o permitisse). A arte da performance, que carrega desde as origens dadaístas o próprio DNA da ancestralidade ritualística do homem, não gera portanto um produto de mais valia. Talvez, os artistas da performance que puderam se dar ao luxo de serem “bem sucedidos” pelas suas performances, como a agora pop Marina Abramović, até o sejam em si, mas sua “mais valia” morrerá com a carne do artista. Porque a arte da ação é o próprio humano enquanto ação; e gerar um produto seria o esvaziamento da crítica que ela carrega. Eis, portanto, o que uma linguagem, que a despeito de ser tão antiga quanto o cinema, ainda não foi totalmente aceita ou compreendida pode nos ofertar: tentar dar conta das mínimas historias que cabem dentro de cada história, que se fazem fora da História, na própria fugacidade do humano. A efemeridade de uma obra performática, que perdura o tempo que dura sua criação, nos oferta a extraordinariedade do cotidiano. E é por isso que, por essência, uma performance é irrepetível, porque funda o próprio espaço-tempo no qual acontece. Porque quer evidenciar que o espanto não se repete, mas nos surpreende. Sua recusa em seguir uma partitura se deve justamente a esse fator atípico de trazer em si e em máxima potência a essência de toda a linguagem com a qual se escrevem partituras, levando a obra ao que ela sempre foi: o exercício da busca pela humanidade e pela animalidade; pela compreensão de que a terra célica com a qual o Prometeu de Ovídio modelou um homem predador de galinhas também o permita irmanar-se delas. Para que o humano recuse a ser o parasita da máquina e onde o corpo, sua maior e a mais negligenciada ferramenta, não se resuma ao mecanismo de prazer ou frustração ao qual o hedonismo moderno o relegou. A performance é a arte do lúdico e converte em tabuleiro a banalidade nossa de cada dia, frustrando o próprio mercado, ao tornar produto apenas o que não pode ser vendido. E é assim que, como na obra "Daily life box set", que apresento no "Monstra – nanofestival de poesia em performance”, a rotina doméstica, desinteressante e desprovida de espetacularidade épica, pode ser ironicamente restringida, padronizada e embalada para consumo – pelo mesmo motivo que as galinhas não: é na negação do que comumente atribuímos à elas que as coisas se tornam poesia e podem nos surpreender.
Márcio-André. Texto publicado no catálogo da mostra.
Fotos de Palíndromo Mészáros. Curador Ricardo Corona
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