Respirar é Possível

Boaventura de Sousa Santos
Folha de São Paulo - 2 de Novembro


As eleições no Brasil tiveram uma importância internacional inusitada. As razões
diferem consoante a perspectiva geopolítica que se adopte. Vistas da Europa, as
eleições tiveram um significado especial para os partidos de esquerda. A Europa vive
uma grave crise que ameaça liquidar o núcleo duro da sua identidade: o modelo social
europeu e a social democracia. Apesar de estarmos perante realidades sociológicas
distintas, o Brasil ergueu nos últimos oito anos a bandeira da social democracia e
reduziu significativamente a pobreza. Fê-lo, reivindicando a especificidade do seu
modelo, mas fundando-o na mesma ideia básica de combinar aumentos de
produtividade económica com aumentos de protecção social. Para os partidos que na
Europa lutam pela reforma, mas não pelo abandono, do modelo social, as eleições no
Brasil vieram trazer um pouco mais de ar para respirar.

No continente americano, as eleições no Brasil tiveram uma relevância sem
precedentes. Duas perspectivas opostas se confrontaram. Para o governo dos EUA, o
Brasil de Lula foi um parceiro relutante, desconcertante e, em última análise, não fiável.
Combinou uma política económica aceitável (ainda que criticável por não ter continuado
o processo das privatizações) com uma política externa hostil. Para os EUA é hostil toda
a política externa que não se alinhe integralmente com as decisões de Washington.
Tudo começou logo no início do primeiro mandato de Lula, quando este decidiu
fornecer meio milhão de barris de petróleo à Venezuela de Hugo Chávez que nesse
momento enfrentava uma greve do sector petroleiro depois de ter sobrevivido a um
golpe em que os EUA estiveram envolvidos. Este acto significou um tropeço enorme na
política norte-americana de isolar o governo de Chávez. Os anos seguintes vieram
confirmar a pulsão autonomista do Governo de Lula. O Brasil manifestou-se
veementemente contra o bloqueio a Cuba, criou relações de confiança com governos
eleitos mas considerados hostis, a Bolívia e o Equador, e defendeu-os dos golpes da
direita tentados em 2008 e 2010 respectivamente. O Brasil promoveu formas de
integração regional, tanto no plano económico, como no político e militar, à revelia dos
EUA. E, ousadia das ousadias, procurou um relacionamento independente com o
governo “terrorista” do Irão.

Na década passada, a guerra no Médio Oriente fez com que os EUA
“abandonassem” a América Latina. Estão hoje de regresso, e as formas de intervenção
são mais diversificadas que antes. Dão mais importância ao financiamento de
organizações sociais, ambientais e religiosas cujas agendas as afastem dos governos
hostis a derrotar, como acaba de ser documentado nos casos da Bolívia e do Equador. O
objectivo é sempre o mesmo: promover governos totalmente alinhados. E as
recompensas pelo alinhamento total são hoje maiores que antes. A obsessão de Serra
com o narcotráfico na Bolívia (um actor secundaríssimo) era o sinal do desejo de
alinhamento. A visita de Hillary Clinton e a confirmação, pouco antes das eleições, de
um embaixador duro (“falcão”), Thomas Shannon, são sinais evidentes da estratégia
norte-americana: um Brasil alinhado com Washington provocaria, qual efeito dominó, a
queda dos outros governos não-alinhados do sub-continente. O projecto vai manter-se
mas por agora ficou adiado.

A outra perspectiva sobre as eleições foi o reverso da anterior. Para os governos
“desalinhados” do continente e para as classes e movimentos sociais que os levaram
democraticamente ao poder, as eleições brasileiras foram um sinal de esperança: há
espaço para uma política regional com algum grau de autonomia e para um novo tipo
de nacionalismo, apostado em mais redistribuição da riqueza colectiva.

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