Entrevista a Marcos Pasche, para o Fórum de Literatura Brasileira da UFRJ.
Márcio-André é poeta, músico, programador de som, performer, tradutor, ensaísta e editor da revista Confraria (de arte, literatura e pensamento). Tudo isso pode nos levar a rotulá-lo como artista mutimídia, porém, bem mais do que isso, Márcio emprega em seu trabalho estético aquilo que reivindica com sua (artísitica) teoria: a ruptura com a lógica da segregação, para que assim a arte não se restrinja e se manifeste plenamente, como uma autêtica reunião de pensamentos e fazeres.
Com a energia dos que amam com o estômago, Márcio-André respondeu e acompanhou detalhadamente a revisão de cada pergunta de sua entrevista, dada a paixão com que impregna suas discussões, justamente por não conseguir ceder ao protocolo ou ao comentário raso quando se trata de debater os entraves das ideologias ocidentais.
Analisando televisão, internet, ciência e, é claro, literatura, ele fala a respeito do seu mais recente livro, Ensaios radioativos, alertando-nos sempre para as obstruções colocadas pelos caminhos abertos pela própria vida.
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Os Ensaios radioativos não são voltados para a análise de obras literárias específicas, mas para a de ideias. Em especial, o livro questiona as ações segregadoras que se perpetuam pelos séculos. É possível identificar uma causa ou gênese de tal separatismo? E, em termos artísticos, onde a segregação é mais flagrante?
A questão mais importante que o livro aborda, ou, se não aborda, eu pretendo abordar em outro livro, e que está intimamente ligada com essas ações segregadoras das quais você fala é a ideia em torno da indeterminação entre ficção e realidade. Cada vez mais, percebo o quão falsa é a fronteira entre ambas. Os limites impostos entre elas talvez seja a maior fraude de nossa tradição filosófica, simulacro espistemológico da vontade de discernir o nós dos outros, amparado pelo julgamento clássico do que é falso e do que é verdadeiro. E não se trata de uma questão meramente filosófica, mas concreta, que tem o poder de nos colocar frente a questionamentos profundos quanto ao nosso sistema ético. O desastre de Chernobyl, a desertificação do mar de Aral e o muro de Berlim servem como exemplos. Esses eventos teriam sido inacreditáveis se não tivessem ocorrido. A única diferença aceitável entre ficção e realidade é o fato de aquilo ter acontecido ou não e sabemos o quanto qualquer história, qualquer passado, é prospectivo ao futuro que se queira chegar e, portanto, segue determinados parâmetros absolutamente ficcionais (a ciência na qual qualquer história se baseia é uma ficção dela mesma). Todo passado é uma invenção e todo futuro uma possibilidade, sendo a única realidade o presente, este tão moldável quanto o sonho. É a ficção (do latim fingere, moldar) que conforma a coisa (res, real). Portanto, toda ficção é real. Diante disso, toda e qualquer segragação não deveria existir e falar de como essas questões afetam a arte não fariam mais sentido, porque não estamos falando de uma ficção e de uma realidade e como elas se interagem, mas da ação direta na coisa, da criação de universos dentro de universos, do mundo articulado como um sonho do humano em um estágio tão profundo de dinâmicas relizadoras que a própria realidade se revela a mais fantástica obra de arte. Obviamente isso não é interessante para qualquer sistema vigente e as segregações só são possíveis dentro destes sistemas – questões completamente externas que surgem a partir dos produtores e consumidores de arte. E aí está o problema: o fato de já haver produtores e consumidores. Essa é a consolidação máxima de uma tal separação, pois subjugamos a realidade, nos colocando como consumidores dela, e a ficcção, nos colocando como seus produtores – de forma que, ao nos impormos em um desses aspectos isoladamente, criamos o outro enquanto coisa estanque. Somos nós que, ao produzir e consumir encerramos um sistema dicotômico, realizando o mundo de maneira fraudulenta. Daí para as institucionalizações e suas infinitas subdivisões é um passo. E são as institucionalizações sobre a arte justamente a matéria dessa segregação. As especulações mercadológicas em torno das obras, as articulações políticas entre os artistas, o sistema de autocanonização, que nada tem a ver com o real debate em torno da arte, toma o lugar do debate real. E essas especulações são os maiores entraves para evitar que cheguemos a esse estágio profundo onde realidade e ficção deixam de ter fronteiras.
Na parte inicial do livro, Você sugere que façamos o exercício (com base na canção "Um índio”, de Caetano Veloso) de "procurar no oculto 'aquilo que terá sido o óbvio'", e em outra parte Você diz que "paradoxo é uma palvra inventada para suprir nossa incapacidade de entender o absurdo do mundo". De que maneira Você explicaria certa tendência comum de ver no absurdo algo estranho, impróprio à vida?
A cada instante nos deparamos com situações que fogem ao ordinário e somos incapazes de percebê-las ou quando as percebemos tendemos a compreendê-las da forma mais banal possível. O cotidiano nos dá indícios, em cada pequena coisa, de que nada faz sentido e que o tempo não tem direção, mas, por já termos sido adestrados à rotina da rotina (e a rotina nada mais é que domesticação da conciência do tempo), insistimos sempre em cultivar e cultivarmos-nos no vetor unidirecional da causalidade (o que é muito cômodo, pois mantêm as coisas funcionando – independente do quão incômodo é seu funcionamento). E isso, em certo sentido, é o responsável pelo maior impasse de nossa era: a crença inabalável de que em algum momento tudo fará um sentido tão pleno que já não teremos dúvidas, sendo que nem ao menos sabemos quais são essas dúvidas. Obrigamo-nos a engulir isso – essa esperança no vazio – às custas da sistematização do pensamento e da institucionalização do corpo. Ao separar um do outro, atribuindo especificidades a cada um deles – e especificidades tendenciosas –, e por consequência criando categorias como este e aquele, adquirimos o impulso físico de sempre nos delimitarmos em certa posição fixa em relação a algum episódio no tempo e no espaço. E o que ocorre é que quando optamos por uma posição, abolimos todas as outras, recusando ver o espectro em sua totalidade. Limitamo-nos a ser bidimensionais, ainda que nosso corpo diga o contrário. Obviamente, o que vislumbro em contrapartida não infere a eliminação das diferenças, mas unicamente a radicalização do equilíbrio entre o que é um e outro, de tal forma que eles possam cohabitar-se sem se anular, uma vez que nessa “unidade” as diferenças não são excludentes e as identidades não são niveladoras. As diversas realidades são concomitantes, realidades opostas e contraditórias cohabitam, consubstanciam e determinam o real, não por eliminação ou assimilação, mas em suas diferenças radicais, tal como a complementaridade, para não enlouquecer diante do comportamento das partículas, aceita que informações excludentes entre si sejam concomitantemente verdadeiras, sendo o confronto dessas a única forma possível de descrever o “objeto” observado (vale ressaltar, entretanto, que, no âmbito da física, a dualidade onda/partícula determina que a luz se defina – onda ou partícula – a partir do instrumento que se escolhe pra observá-la, unicamente por uma questão narrativa contida na própria natureza de nossos clássicos “instrumentos” e “instruções” de observação. Dificilmente a linguagem científica dá conta da concomitância dessas realidades impossíveis e absolutas em um só ente. Geralmente é a arte que nos possibilita tal experiência). Ora, o que você chama de “absurdo” nada mais é que uma invenção da nossa tradição para tentar enquadrar dentro de seu próprio sistema toda e qualquer manifestação dessa concomitância de realidades sobrepostas. E de alguma forma voltaríamos àquela questão anterior sobre a separação entre ficção e realidade, e toda a sua cosmogênese ao rés do conceito de verdade, uma vez que a vida é o mais absurdo dos roteiros já escritos.
No texto "Tradução enquanto exercício quântico", Você diz ser imprescindível que o crítico seja também um artista. Em que sentido pensa tal fusão? Além disso, Você vê algum crítico brasileiro que a tenha empreendido?
Não existe, nem nunca existiu uma obra de arte que não seja por si só um exercício da crítica. Toda obra é sempre um pôr em crise as outras obras, a partir do momento em que ela põe em crise a própria realidade – ainda que algumas, por falta de cuidado, reafirme o senso comum (mantendo o real dentro do controle e fora da crise). Sempre que produzimos uma obra, sobretudo quando produzimos a partir de outra obra, nos colocando numa situação de leitor e criador ao mesmo tempo (por exemplo, ao adaptar um livro para o cinema, ao musicar um poema, ao encenar uma peça, ou ao traduzir um poema de outra língua – e essas são propostas do Pound), estamos fazendo o mais profundo e radical exercício da crítica. Pois só penso ser possível conceber uma crítica a partir do sentido de perda no outro – o profundo envolvimento criativo com a obra posta em crise –, num processo muito próximo ao que o artista enfrenta ao criar do “nada”. Nesse sentido, os críticos estão aí (para citar os mais óbvios): as traduções do Augusto e do Haroldo de Campos, as adaptações de Hector Babenco do Beijo da Mulher Aranha e do Brincando nos Campos do Senhor, as encenações de Os Sertões e Esperando Godot do Zé Celso, as composições do Uakti sobre peças do repertório clássico. Mas quanto à outra crítica – sobre a qual eu imagino que você queira que eu fale –, a crítica formal, acadêmica, nessa, eu tenho visto realmente pouco poder de pôr o mundo em crise, pelo seu caráter restritivo no que concerne a obra, tendendo a fechar mais do que a abrir, o que – ressalto – nem sempre é uma regra, e o que não quer dizer que esse tipo de crítica não possa ser reinventada a partir de um outro éthos em relação ao “objeto” literário, de tal forma que a literatura deixe de ser objeto para se tornar inteiro na própria crítica – correndo o risco, a crítica, de se verter em obra.
Uma pergunta inevitável: como avalia a literatura brasileira de hoje?
Olha, temos tido uma grande pluralidade de timbres na poesia atual, com uma qualidade invejável em relação há alguns anos atrás. Mas, ao mesmo tempo, percebo que falta, não uma unidade, mas certo projeto coletivo. Hoje os grupos estão tão preocupados em se combater ou se firmar como hegemonia que o que realmente interessa na poesia fica em segundo plano, tanto é que os grupos não se organizam mais sequer esteticamente, mas apenas politicamente, em torno de editoras e instituições. Esmeram-se na técnica da autocanonização. A preocupação é ser a próxima bola da vez. Então acaba sendo muitas vezes uma poesia vazia, pouco interessada em reinventar o seu locus temporalis, apesar do inegável trabalho de carpintaria, da inventividade e da criação de novos meios por parte de muitos jovens poetas. Isso é imprescindível, claro – na verdade, é o básico –, mas já passou a época de achar que somente isso basta – é preciso mais. E não estou falando de engajamento político, nem de um papel especial do poeta na sociedade, nem do escritor como grande profeta ou qualquer besteira desse tipo, mas de um egajamento real na própria poesia. Não basta o esmeramento da escrita – o poema não acaba na fruição estética –, é preciso sair da institucionalização. Uma poesia que dialogue somente com o autor ou com seu grupo (cada vez mais guetizada) não vale a tinta que a imprime.
Um dado interessante de Ensaios radioativos é refletir sobre fenômenos algo insólitos em estudos intelectuais, como o Google e o Pânico na tv. O que o levou a pensá-los? E quanto do nosso tempo pode ser lido em tais fenômenos?
Olha, como todo mundo, eu sou um usuário frenético do Google e durante muito tempo – na época em que valia a pena – eu assistia religiosamente ao Pânico na TV. Esse foi um dos raros programas que me motivou por um tempo a ligar a televisão. E não perdi nada com isso. Na verdade, acho que emburreci um pouco, o que é sempre bom. Mas o fato é que essas coisas da cultura do lixo, do populesco, quando bem feitas, me acrescentam tanto ou mais que muitos livros que me obrigaram a ler para tirar o meu atestado de “intelectual”. Só que, veja bem, hoje há uma moda pelo marginal, pelo junkie, pelo sujo. É de bom tom falar das coisas banais, de livros pops e das celebridades, mas não é o caso aqui. Também nunca me interessou fazer um elogio da cultura de massa – ainda que não veja um mal intrinseco nisso. Eu enxergava de fato nessas coisas que escolhi um diálogo pela sua qualidade. O Pânico na TV (e falo, na verdade, de alguns aspectos muito precisos do programa, pois em muitos outros ele era totalmente dispensável) foi para mim a prova de que se podia fazer coisas ousadas na televisão, colocando o próprio sistema televisivo em crise. E eles não foram únicos, apesar de terem sido (quase) pioneiros no Brasil. Eles mesmo se inspiravam num outro comediante americano já (supostamente) falecido, Andy Kaufman: um mitômano que criava tantas realidades e piadas pessoais que nem mesmo os produtores sabiam o que era verdadeiro ou falso. Sem falar de séries como Twin Peaks, Seinfeld ou as vinhetas do Bruno Aleixo, em Portugal. Estes programas se esmeraram na pura intervenção virtual para além da TV, como Banksy faz a mais brilhante intervenção urbana para além do grafite. Mas também não foi por gostar ou não que eu escrevi a respeito dessas coisas. Escrevi porque entrevi ali, no Google e no Pânico na tv, o material necessário aos devaneios do real, o que se estava concretizando de mais irreal em nossa sociedade – como se surgisse uma nova possibilidade borgeanamente labiríntica em ambos. Estava ali, explícito, com alguma inteligência (mais do que a nefasta ideologia da cultura do livro nos obriga a acreditar), tudo o que precisávamos para nos perder sem retorno nas vias da indeterminação entre o falso e o autêntico – ficção e realidade. E isso da maneira mais irônica possível: deixando margem para a mentira – a forma mais pura de verdade.
Por causa do capítulo "Proposta para se pensar as nuvens", no qual se fala do amor pelas coisas ordinárias, Você foi tachado de provinciano ao enaltecer as casas suburbanas, destacando-lhes a arquitetura espontânea, sem a uniformidade habitual dos prédios da Zona Sul. Como avalia tal crítica?
A cidade do Rio de Janeiro chegou a um limite no qual parece incapaz de produzir um pensamento fresco ou renovador. Excetuando alguns intelectuais indiscutíveis de uma geração anterior (Joel Rufino, Nei Lopes, Milton Santos, Costa Lima, Silviano, Emanuel Carneiro Leão, Eduardo Portella, para citar alguns), me parece que a intelligentsia carioca, sobretudo a geração mais jovem, tem se valido da retórica do saber unicamente como adorno para a manutenção de seu lugar na aristocracia intelectual. Num misto de erudição de livraria de zona sul e cultura televisiva dominical, eles vão ocupando os canais por meio dos jogos de influência. E sem um engajamento e uma reflexão profunda da e nas coisas, resta somente para eles a reafirmação do senso comum – pior, do seu próprio senso comum. Eles são completamente incompetentes para pensar a cidade, uma vez que o seu papel de intelectual é um embuste atribuído hereditariamente de geração em geração, através dos vícios e segregações que tornaram a cidade o que ela é. Não deixa de ser simbólico o fato de a pessoa responsável pela crítica que você menciona ser filho de um grande figurão. Há hoje uma geração de “filhos de” que, atrelada a geração dos “amigos de”, “primos de” e “cunhados de”, promove uma verdadeira suruba de troca de influências com o único propósito de não largar o osso, num país que sequer fez uma reforma agrária ou social (é uma lógica maquiavélica – fundamento de uma segregação invisível, onde o próprio segregador se recusa ou finge não percebê-la). Sobra a falta de bom senso e do que dizer. Ora, não saber o que dizer resulta e já é resultado de um não saber ler. Obviamente é natural que quem me fez tal acusação tenha vestido a carapuça, irritando-se com um texto que questiona a imagem tradicional da “cidade maravilhosa”, o legado que seus pais e compadrios lhe deixaram como herança. E qualquer um que proponha uma outra cidade, uma cidade sonhada de dentro para fora, uma cidade que se queira outra coisa que não a pseudo-Paris de botequins-butiques do Leblon, será tachado de provinciano. Obviamente, há outra questão também: o fato desse texto vir de um cara sem “pedigree”, que não fazendo parte de seu círculo de relações, sequer socioeconomicamente, não frequentando suas festinhas, não compactuando com sua cosmovisão deslocada da realidade que lhe bate a porta, ouse refletir bem além do que ele possa compreender. O que se converte numa grande demarcação de território, uma vez que qualquer postura política por parte dessa falsa classe de intelectuais não defende absolutamente nada da qual não possa tirar proveito. Eu entendo esse ataque como uma forma de disfarçar a própria incapacidade em se renovar. E note que estamos falando de alguém que graças a seu círculo de influência adquiriu status de “intelectual” em pouquíssimo tempo, com textos semanais que debatem a etimologia dos livros da Danuza Leão ou fazem profundos questionamentos em torno do direito à privacidade do craque Ronaldo.
Numa entrevista inserida no livro, você enfatiza a ideia de que o crescimento do número de leitores pode não significar algo positivo como se tenta fazer crer. A mais, toca-se na questão da qualidade do leitor. Por que e para quem os Ensaios radioativos foram escritos?
Sinceramente: para os caras que vão me tachar de provinciano. Os rapazes e moças cuidadosos, esses que conseguem abrir um livro, qualquer que seja, e discernir a fundo o que está escrito ali, não precisam dos Ensaios. Ele só descreve o que essas pessoas já sabem. Nesse sentido, os Ensaios é que precisam deles. São eles que potencializarão a escrita do livro com a sua própria força de contaminação. Pois os livros não são a salvação de nada – sobretudo os Ensaios radioativos. Os livros enganam apenas aqueles que lhe dão valor suficiente para, por pura ingenuidade, acreditar na sua dessacralização – como se em algum momento ele tivesse sido algo sagrado. A cultura do livro (pelo menos da forma que ela chegou até nós) é nefasta. As políticas de leitura no mundo são alavancadas por editoras que querem fazer dinheiro como se vendessem cigarros (sendo que cigarros são coisas mais honestas). Para elas, pouco importa esse papo de “poder transformador” do livro sobre o leitor, mas a quantidade de livros que ele deve consumir. Num país a meio caminho de lugar nenhum, como o Brasil, nem a isso se presta. Aqui, a cultura do livro serve à segregação social, racial e cultural. Quantas livrarias existem na Zona Norte do Rio? Quantos favelados podem entrar numa livraria no Leblon? Então é difícil enxergar no livro esse tal valor dignificante apregoado há séculos por nossa tradição iluminista. Eu acredito, verdadeiramente, que um livro hoje só tem algum sentido se for para destruir a própria cultura do livro. Pode parecer uma contradição, mas, o melhor ataque, todos sabem, é aquele que utiliza as próprias forças do alvo, o que ele tem de mais inflamável. E o mais inflamável, nesse caso, é tornar o livro um antilivro. Dizer o contrário do que se espera que um livro diga. Destruir o livro como fetiche, com uma violência tal que se faça perceber que o próprio “conhecimento” é uma farsa. Quando evidenciamos essa farsa, a coisa acaba soando mais como brincadeira. E a brincadeira é justamente o espaço em que os “brinquedos” podem ser destruídos em prol da própria brincadeira. É somente aí, na frequência do lúdico, que o conhecimento pode começar a tornar-se libertário.
Você se diz o primeiro poeta radioativo do Brasil. A radiação contamina também o ensaísta? E como isso se manifesta?
Claro que sim, até porque dentro do princípio da contaminação não há separação entre ser poeta, ensaísta, músico, performer ou ser humano. O que eu escrevo nos meus ensaios já está em minha poesia e em minha vida. Eu sou o que eu escrevo. A exposição à radioatividade lá em Chernobyl apenas me deu a consciência disso. Ser radioativo me dá o poder de potencializar a contaminação nas coisas. Quando se tem contato com o césio, se começa a ter ideias estranhas, pois o césio, antes de criar mutações nas células, cria mutações no pensamento e no sonho. Eu consigo, por exemplo, escutar o pensamento dos outros de mim (que já são também outros de outros) – entes de outras possibilidades existenciais e de outros tempos – como se eles estivessem a meu lado aqui e agora ao mesmo tempo, sonhando-me e dando-me existência, como o reflexo no espelho que coordena minhas ações. E com isso eu consigo prever algum meio de driblar certas estruturas e escrever sobre elas, e não a partir delas.
A proposta de "contaminação" é bastante ampla, indo além de um mero conceito crítico e da ideia de afinidade. Mas é possível dizer que algumas obras estão mais contaminadas por umas do que por outras? Se sim, quem ou o que mais contamina os Ensaios Radioativos?
A contaminação não é um estado de espírito. Não é uma força, nem uma energia, nem uma troca. Não pressupõe a interrelação entre obras, homem ou mundo. É um algo anterior a isso tudo. É a condição fundamental de ser-com-e-nas-coisas. Se não fosse a contaminação (que é apenas um nome que dei a esse princípio), não haveria sequer encaixe entre uma coisa e outra. Nós não poderíamos, por exemplo, empilhar dois tijolos, segurar uma pedra na mão ou entrar dentro de uma casa, pela pura e simples falta de sintaxe do real. Portanto, a partir desse sentido de claridade e encaixe entre as coisas, é possível inferir que tudo se pertence e se conecta mutuamente, sem hierarquias, sem vetores temporais ou dinâmicas de criação. Tudo já está pronto (assim como sua plena possibilidade de conexão nas outras coisas) antes mesmo de ser criado e surge a todo instante. Nós é que escolhemos aceitar ou não seu surgimento. Portanto, nos termos da arte, a contaminação não se refere propriamente a uma relação de uma obra com a outra, mas as possibilidades em aberto da própria obra. Toda obra se origina a partir dela mesma – da concretude do humano no sonho do real. Então, para responder a sua pergunta, coloco outra pergunta, um tanto metafórica: a água é mais hidrogênio ou oxigênio? Você pode até responder a isso se baseando na quantidade de átomos de cada um dos elementos presentes nela, mas o fato é que se tirarmos qualquer um de seus elementos, mesmo o átomo repetido de hidrogênio, teremos outra molécula que não a de água, ou sequer teremos uma molécula. Mas o mais interessante é que nem por isso essa nova “entidade” perde sua potência de se tornar novamente água. De forma que posso dizer que os Ensaios radioativos foram contaminados por todas as obra que eu não li, além de algumas já lidas – enfim, pelas obras que ela pode gerar, ou não.
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