Lisboa nunca existiu para além desse instante

Lisboa nasceu de um terremoto. O mesmo que dizer: nomearam os escombros diante do rio: deram nome ao nome cidade: o nome de outro lugar que coube no mesmo lugar. Essa cidade inventada por um poeta e esquecida por outro. E no meio dela, esse meiopoeta desejando profundamente o sonho mínimo que sonham as tainhas no rio em frente. E que pára para ouvir o canto de pedra desses peixes de pedra e almeja para cimento do próprio corpo o limo das barbatanas [para conhecer a pedra, sê pedra]. Minor queria a palavra perfeita e Dominic Matei refez-se jovem para continuar buscando a origem das línguas, e, no entanto, este rio é uma sentença impronunciável e cabe inteiro na janela. Sem tradução. A Paisagem na janela é a mesma que está lá fora, com seus cargueiros à óleo diesel [todo lugar é cópia de si mesmo – os turistas só conhecem a cópia]. Nem o sucesso nem a razão nem a ruína nem o flagelo das saias das raparigas de pernas grossas subindo a ladeira da bica nada disso é desculpa para levar essa cidade a sério e acreditar que estamos ali mais do que realmente estamos. Ela só existe enquanto é caminhada. Ela é uma circum-navegação em torno da medula da cabeça e da mão. A cidade é a parte mais encantadora das pessoas. E, assim como esse rio corre sem a porra da bênção dos santos e detém na língua laminada do seu muco-pedra polida o sacro-saber de ser rio, não é preciso querê-lo para sempre. É preciso querê-lo agora, enquanto rio. Como o querem as roupas nos varais quando o chamam balançadas pelo vento. A infelicidade é um vício, mas todo o resto é diversão.

M-A

6 comentários:

João Bosco da Silva disse...

Gostei caro Márcio. Nesse estado é que uma sinceridade mais sincera do que a habitual vem à superfície do ego. Também queria ser meio de algo... Abraço

Márcio-André disse...

Pois, meu caro. Nosso estado na vida é de entremeio. O extremo é para o feitos que nada mais têm a conhecer ou se embebedar. Vivendo e bebendo, meu caro...

Edson Bueno de Camargo disse...

Nunca conhecerei Lisboa. Mas é como estivesse.

Só o vinho é porta de entrada para nós mesmos.

Márcio-André disse...

Por que nunca conhecerá? Por que tanto determinismo com o que ainda não foi?

Noa disse...

Ler-te logo pela manhã, assim, tão cedo! Aaaahhhhh!
Como te percebo! Faz-me lembrar uma música que me toca profundamente e é um pouco disso q vc quer dizer:
"‘Inda bem que o tempo passou
e o amor que acabou não saiu.
‘Inda bem que há um fado qualquer
que diz tudo o que a vida não diz.
Ainda bem que Lisboa não é
a cidade perfeita p’ra nós.
Ainda bem que há um beco qualquer
que dá eco a quem nunca tem voz.
‘Inda agora vi a louca sozinha a cantar,
do alto daquela janela.
Há noites em que a saudade me deixa a pensar:
Um dia juntar-me a ela.
Um dia cantar…
como ela.
‘Inda bem que eu nunca fui capaz
de encontrar a viela a seguir.
‘Inda bem que o Tejo é lilás
e os peixes não param de rir.
Ainda bem que o teu corpo não quer
embarcar na tormenta do réu.
Ainda bem se o destino quiser
esta trágica historia, sou eu.
‘Inda agora vi a louca sozinha a cantar,
do alto daquela janela.
Há noites em que a saudade me deixa a pensar:
Um dia juntar-me a ela.
Um dia cantar… "
como ela."

Deplumes

Beijos e
Bom diiiiiiia!!!!!

Márcio-André disse...

Lindo! Obrigado pelo poema : )

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