Certas Palavras
Texto sensível escrito e ofertado pelo amigo João Paulo Moreira, da Universidade de Coimbra. Essa pequena crônica foi publicada originalmente na revista Rua Larga No. 10 (Outubro de 2005)
As palavras são o único bem que temos como certo
William Butler Yeats
William Butler Yeats
Contidas num poema de 1885 do grande poeta irlandês, as palavras transcritas em epígrafe foram um dia assumidas por um tal William Chester Minor, um quase desconhecido médico norte-americano que se tornaria num dos mais devotados servidores da causa das palavras que o mundo já conheceu.
Nascido no antigo Ceilão em 1834 e formado em medicina pela Universidade de Yale, W. C. Minor serviu como médico na Guerra-Civil e fixou-se em Londres em 1871, já com sintomas da paranóia que em breve o levaria a cometer um assassínio absurdo e a ser encarcerado num manicómio até ao fim dos seus dias. Por volta de 1880 conhece Sir James Murray, grande responsável pelo arranque do Oxford English Dictionary, passando a integrar o grupo de leitores voluntários que, de todas as partes, faziam chegar aos editores informação vital sobre as mais antigas ocorrências das palavras da língua inglesa. Deste modo, a partir da sua cela forrada de incontáveis livros que devorava com infatigável zelo, Minor tornar-se-ia um dos mais destacados colaboradores do projecto monumental que foi o O.E.D., retribuindo o gosto que nutria pelas palavras com uma dedicação e um sacerdócio proporcionais ao seu infortúnio.
Entendidas à luz desta tocante tragédia pessoal, talvez as controversas palavras acima citadas, eventualmente toleráveis à conta de exagero de poeta, não se afigurem, afinal, a atoarda que pareciam ser. Em todo o caso, há que imaginar Minor feliz.
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Também eu gosto de palavras. Desde cedo que as quis contemplar de perto, decifrar, conhecer-lhes melhor a vida secreta. Foi provavelmente essa a razão de ter optado pelos estudos de Filologia, quando tive que me decidir por um modo de vida. Intriga-me o poder de sedução da palavra, e por isso invejo à criança a surpresa inaugural com que se encanta ao ouvir palavras novas. É como se, nesse momento, nela se reencenasse o espanto ancestral perante o mágico poder evocativo que o verbo tem. Porque é exactamente como afirmou Ralph Waldo Emerson: “Toda a palavra foi, outrora, um poema”. Invejo igualmente quem sabe usar as palavras com um cinzelado lapidar. Ocorrem-me, entre autores dilectos, os nomes de Almeida Garrett, Alexandre O’Neill, Sophia Breyner Andresen, mestres, cada um, de um portuguesíssimo estilo, apesar —ou talvez por causa— das respectivas raízes estrangeiras.
Gosto de palavras. Palavra que gosto. Gosto delas por dentro e por fora. Sobretudo quando o dentro e o fora, som/imagem e sentido, parecem fundidos em inapartável conúbio. Algumas conseguem, de facto, comunicar essa impressão de mot juste, de uma formulação absoluta e terminante (ou necessária, ou motivada, como dirão o filósofo e o linguista). É esse um mistério evanescente, quase religioso, que as palavras mal conseguem explicar. São assim em princípio, por sua própria natureza, as onomatopeias. Mas não só. Um exercício que por vezes proponho nas aulas consiste em convidar os alunos a partilhar as suas palavras favoritas, desafiando-os de seguida a procurar explicar o porquê da preferência. A razão nem sempre é inteiramente consciencializada, mas resulta óbvio que as mais das vezes ela passa por esse estranho mecanismo de vinculação paramnésica entre significado e significante, entre o nome e a coisa. Pessoalmente, encontro essa aura de auto-evidência em palavras como ziguezague, suave, ou abencerragem. E talvez conseguisse buscar explicações para tal, se não fosse mais forte o desejo de que permaneçam insondadas.
A quem as aprecie e saiba cultivar, conferem as palavras um precioso capital pessoal. E não menor é a sua importância no plano colectivo, enquanto suporte de uma cultura genuinamente radicada num espaço e num tempo determinados. Sinto uma secreta satisfação, por exemplo, por não encontrar nos dicionários a palavra “tarrote”, que é como na minha terra natal aprendi a dizer pardal. Na singularidade desse património lexical de uma região sinto haver um irredutível resquício identitário que nem o tempo nem a distância conseguiram apagar.
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Palavra puxa palavra, o contador automático de carácteres já acusa, nesta crónica, várias centenas —e tanto ainda por dizer, do que as palavras fazem e deixam fazer… Como pedir, dar, e tirar a palavra; tomar, dirigir e passar a palavra; cortar, e até molhar, a palavra. E também cumprir, para não faltar à palavra. Há quem coma as palavras, e quem as beba, e quem as tenha que engolir. Há gente de poucas palavras, e outros, mais lacónicos ainda, que dizem tudo em duas palavras, quando não numa palavra ou mesmo em meias palavras. Há quem use palavras caras, para esconder palavras vãs. Disso (palavras, leva-as o vento!), diz-se que é palavreado. Mas do seu contrário se diz —e bem— que é certo, porque está apalavrado.
Certa, também —diz-se—, é a morte. Mas dessa lei também a palavra presume libertar, como defenderam tantos poetas e outros palavreadores. Por outras palavras, dizem que as palavras são tudo o que temos para contrapor à morte e ao silêncio —que assim não terão a última palavra.
2 comentários:
Belíssimo texto. Nunca tinha ouvido falar no William Chester Minor. Já fiz uma busca e estou lendo sobre ele. Uma biografia triste e interessantíssima.
Vou explorar com calma o seu blog, Márcio; usando um avental de chumbo.
Abç,
Chico
De fato, bela crônica. Mto sensível. Não quero outra redenção q a prometida pela fé órfica. Gilbert Durand:
"Que seriam os Argonautas sem a lira de Orfeu? Quem daria a cadência aos remadores? Haveria mesmo um Velo de Ouro?"
Abrç,
Fábio Gullo
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