Os ensaios radioativos de Márcio-André
Por Carlos Felipe Moisés
Enquanto parte da literatura brasileira torce o nariz para a multiplicidade de rumos que aí está e insiste em preservar sua crença no sistema, na especificidade de gêneros e categorias e na autoridade de instâncias consagradas; enquanto outra parte promove a exaltação do antissistema ou a diluição geral de gêneros e categorias (mas sem abrir mão da nova autoridade propiciada pelo radicalismo autoindulgente), poetas como Márcio-André, representante dessa que já vem sendo chamada Geração 00, parecem ter dado um passo adiante, finalmente libertos do imobilizador impasse vanguarda x tradição. Alheio à velha querela, o autor desses instigantes Ensaios radioativos se empenha em tirar partido das contradições e ambivalências, das impurezas e da heterogeneidade, atributos até há pouco tomados como indícios de uma “transição” (que jamais se cumpre) mas, já agora, encarados como matéria inalienável de toda criação literária. Um passo, quem sabe, no rumo da tolerância.
Na condição de poeta para quem “o poema como o conhecemos é apenas um dos ritos da poesia” (pág. 135), condição que ele associa, em alegre promiscuidade, à de violinista, performer, crítico, editor, andarilho etc., deglutidor insaciável, enfim, de quantos estímulos a vida cotidiana lhe ofereça, Márcio-André defende o primado da “contaminação”. Para ele, ser poeta é deixar-se contaminar. Ao assumi-lo em diapasão pessoal (“me estipulo estado de antena em frequência aberta”, pág. 129), ele sabe que isso equivale a repor em circulação, por exemplo, a antiga quimera iluminista, como a proposta no Laocoonte, onde Lessing preconiza a correspondência de todas as artes. Logo, não é de estranhar que essa “antena de frequência aberta” sintonize ao mesmo tempo com as miudezas do cotidiano (“não há poesia desvencilhada da vida”, pág. 15) e com parcelas consideráveis de erudição, que ele vai buscar em Heráclito ou em Heidegger, em Fernando Pessoa ou em Ezra Pound, em Edward Hopper, na física quântica, em Derrida, em Walter Benjamin ou no Google (outra vez, a alegre promiscuidade), ou onde quer que a larga tradição cultural do Ocidente lhe ofereça algum apoio ao sentimento mais forte, centrado no sem-sentido das coisas: “paradoxo é uma palavra inventada para suprir nossa incapacidade de entender o absurdo do mundo” (pág. 53).
Mas essa erudição, para Márcio-André, vale tanto quanto a famosa escada que Wittgenstein recomenda jogar fora, tão logo seja atingido o último degrau. Na esteira da “aprendizagem de desaprender” ensinada por mestre Caeiro, o poeta não hesita: “proponho que esqueçamos tudo o que nos ensinaram nas escolas, com seus professores cansados, e ensaiemos o ofício do desconhecido” (pág. 16). Por que só os “cansados”? Talvez fosse o caso de se pensar em todos, incluindo os descansados, já que, no primeiro caso, em que nada chega propriamente a ser ensinado, não haverá o que esquecer. Mas, para se atingir esse grau superior de esquecimento (mescla de arrogância e humildade), é preciso ter frequentado, com proveito, a melhor escola possível: não há como desaprender o que não tenha sido, antes, bem aprendido, assim como não é possível sequer enxergar (que dirá jogar fora) a escada que não tenha sido galgada degrau por degrau.
O leitor talvez se surpreenda, mas o autor é estritamente coerente com seus pressupostos quando advoga o fim do culto à personalidade, que na nossa tradição coloca sempre o artista antes da obra, o poeta antes do poema. Márcio-André propõe “entendermos poesia como diálogo e não como meio de autoafirmação e dinâmica do poder”, um diálogo travado “entre leitor e mundo – em uma tensão que os reúne e religa essencialmente –, no qual o poeta é um ‘tradutor’ e nem ao menos deve orgulhar-se disso” (pág. 29). Neste passo, o poeta-ensaísta repõe em circulação outra quimera, não tão antiga quanto a de Lessing, o sonho daquele Lautréamont que profetizou: “um dia a poesia deverá ser feita por todos”.
Tudo somado, esses ensaios de enfrentamento com o desconhecido, por mais que possam incomodar o establishment (o reacionário ou o avançado), constituem um generoso elogio à sensibilidade e à inteligência do leitor que não tema ser contaminado pela radioatividade aí acumulada. Ou promovida.
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