Limite, de Mário Peixoto, completo no youtube

O filme no youtube está dividido em doze partes (a indicação foi do poeta e camarada Ricardo Domeneck). Eis a primeira:



Para assistir ao filme sem interrupção, clique na
lista de reprodução.


Abaixo, texto de Marcos Aurélio Felipe sobre o filme (publicado na edição #25 da Revista Confraria).
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LIMITE:

Sob uma primeira impressão, Limite (1931, de Mário Peixoto) provoca a sensação de infinitude. Na sequência de abertura, a banda sonora e o processo de fusão, que gera a sucessão quase ininterrupta de imagens, desenvolvem no filme uma situação aparentemente interminável, ainda que paradoxalmente finita. O que, de início, coloca nossa percepção de certa forma em um labirinto, a partir de um jogo de signos no qual a matéria (o aspecto formal) não dialoga semanticamente com o significado (situação imposta, naquele barco, como realidade). Principalmente porque, no decorrer de quase dez minutos, o que vemos são imagens terminais, uma realidade prestes a desaparecer ou, literalmente, naufragar: a imagem e a realidade de sujeitos à deriva – os corpos de um homem e duas mulheres náufragos perdidos na imensidão do mar e na geografia restrita, diminuta e prisional de um barco. Mas, ao desenvolver a impressão do filme náufrago, essa realidade finita não invalida a sensação do objeto interminável que, em função da materialidade fílmica (imagem e som), acontece no encadeamento de planos em fusão como em abismo: abutres sobre uma montanha devorando uma carniça dão lugar ao rosto de uma mulher com os braços de um homem algemados por sobre seus ombros, sucedendo-se mãos algemadas para, em seguida, o quadro ser preenchido pelos olhos fixos de uma mulher em direção à câmera.

Ao longo dos anos, Limite tornou-se um filme marcado por uma certa aura mítica, transformando-se, inevitavelmente, em um objeto unânime, absoluto e quase intocável. Portanto, indissociável das representações mentais, tanto daqueles que o assistiram algum dia quanto dos que nunca chegaram a ver suas imagens, constituindo-se, desse modo, num dos não tão raros casos da história do cinema: “amado por todos e visto por poucos”. Vinculado a um conjunto de representações, Limite foi concebido e realizado por um jovem, pasmem, de apenas vinte e um anos de idade, que, independentemente das evidências, afirmava ter nascido em Bruxelas, Bélgica, em 1908, quando as provas apontam a Tijuca, Rio de Janeiro, Brasil, como o seu lugar de origem. Assim, é um filme marcado, ao mesmo tempo, pela projeção única organizada pelo Chaplin Club, no Rio de Janeiro, em 1931, por sua não comercialização nas salas de cinema da época e pela permanência no decorrer de anos numa certa memória coletiva do cinema brasileiro. Em maio de 2007, o mítico Limite chegou ao Festival de Cannes depois que o diretor brasileiro Walter Salles o apresentou a Croissette, por ocasião do lançamento oficial da World Cinema Foundation, associação sem fins lucrativos, tendo como objetivo ajudar economicamente a preservação, restauração e a difusão de filmes de todas as partes do mundo.

Independentemente de sua mítica e reconhecimento internacional, Limite aponta para nuances que, a cada sequência, potencializam um cinema vinculado, principalmente, à realidade da câmera e, consequentemente, a um olhar particular sobre o mundo. Do início ao fim, desenvolvendo imagens referentes apenas à realidade de mecanismo de captação, Limite é um filme que constrói o seu próprio paradigma de imagem. Amplia, assim, a partir de um conjunto de ângulos, movimentos, posição e enquadramento de câmera, o drama dos personagens. No entanto, mesmo diante da força da imagem de sujeitos à deriva, presos a um barco, impressiona a forma como Mário Peixoto, cartograficamente, desloca a câmera sobre o espaço, o lugar e o campo circunscritos habitados por náufragos. Assim, em Limite, a sensação é a de um filme cuja dimensão pertence, eminentemente, ao campo do cinema, constituindo uma realidade que nasce e se desenvolve dentro da câmera. Proposição latente quando, por sua vez, a câmera se desloca dos corpos para o remo e, depois, para as bordas do barco, como se, apesar da desolação humana, o único dado que importasse ao filme fossem pedaços de madeira e partes de um barco: a geografia de uma situação náutica. Por outro lado, mesmo que, às lentes de Edgard Brazil, sejam importantes os personagens, eles aparecem como mais um dos objetos da imagem que se desdobra em um mundo forjado pela particularidade da câmera.

Perdido no tempo durante décadas, quase integrando a assombrosa estatística do Cinema Mudo (1910-1929), na qual praticamente 80% dos filmes desapareceram, Limite é resultado de nascimentos e mortes constantes. Desde o início, sua trajetória foi presenciada por poucos e marcada por algumas sessões especiais, como a programada para Orson Welles e Maria Falconetti. Em deterioração, depois que, em Londres, Sergei Eisenstein supostamente escreveu artigo elogiando seu alcance cinematográfico e, no Rio de Janeiro, Georges Sadoul o nomeou como a “obra-prima desconhecida do cinema” (mesmo sem ter visto o filme), Limite começou a ser restaurado por Saulo Pereira de Mello e Plínio Süssekind, em 1959. Com isso, ninguém mais o viu até o final da década de 1970, o que contribuiu para o desenvolvimento do mito da obra-prima desaparecida e objeto de poucas visões. Como obra inicial realizada por um jovem que, no final dos anos de 1920, viveu no Velho Mundo, Limite resultou da associação de imagens físicas e mentais. Passeando pelas ruas de Paris, Mário Peixoto deparou-se com a fotografia de André Kertesz na edição #74 da revista VU – o rosto de uma mulher por cujos ombros passam mãos acorrentadas de um homem – e, imediatamente, a associou a outras imagens que perseguiram seu pensamento no decorrer da noite – num mar de fogo com uma mulher agarrada ao pedaço de madeira do resto de um barco.

Como imagem da solidão e desolação humana, angústia de indivíduos em silêncio diante de suas limitações e impossibilidades, o barco à deriva com um homem e duas mulheres inertes em seu interior vem à tona permanentemente. Intercalando a história de cada personagem, que, aparentemente, nasce de suas memórias, essa imagem torna-se recorrente e intensifica a morbidez de corpos inertes em contraste com o processo contínuo de recordações dos últimos momentos de suas vidas. Dessa forma, acompanhada pela melancolia da música de Erik Satie, Mário Peixoto a transforma em leitmotiv, fundamental para a infinitude que nos toma de assalto durante as sequências. Sem essa música, quando as exibições de Limite, literalmente, o tornavam um filme mudo, é necessário perguntar-se como eram as sessões sem a sincronia entre imagem e som, a profundidade do olhar da personagem de Olga Breno e a sonoridade que entra por suas veias ao mirar, infinitamente, o olho da câmera. Entre uma inserção e outra das recordações dos personagens, o que, em quadro, se configura em sequência são os deslocamentos de corpos por uma vila litorânea, árvores secas que compõem a paisagem e habitações abandonadas.

Diante do realizador sem precedentes e sem uma segunda obra concluída, deparamo-nos com um processo de afetação e frustração contínuo no decorrer de Limite. Principalmente porque aponta para um cinema calcado nos valores da imagem em si diante de uma trajetória de impossibilidades, interrupções e reclusão. Mas, além das imagens devastadoras e poéticas de Limite, ainda restam, em extras de DVD lançados no Brasil, seis minutos que documentam o outro lado da janela (como um making of), cujos fragmentos revelam os bastidores, a equipe no intervalo das filmagens, o fotógrafo Edgar Brazil, a intimidade das atrizes e atores e o jovem diretor sentado na barcaça olhando para a câmera. A possibilidade de um segundo trabalho (Onde a Terra acaba, 1934) desintegrou-se depois de sucessivas brigas com a atriz Carmem Santos, que, no papel principal, era a grande estrela do momento. Interrompido quando um terço das imagens estava concluído, o que foi salvo dos restos de um incêndio da segunda incursão de Mário Peixoto pelo cinema foram cenas esparsas, montadas e inconclusas. Em algumas delas, identifica-se a percepção aguda do movimento da imagem para o que existe dentro e fora de suas bordas (campo/contracampo) e da câmera como observador externo a filmar a realidade em processo.

Característica que, em Limite, torna a câmera de Edgar Brazil um corpo independente, sobretudo quando acompanha uma das personagens depois de sair da prisão e outra personagem que caminha por ruas em silêncio e vazias em direção a uma casa. Sob o comando de Mário Peixoto, a dimensão da câmera não utiliza como parâmetro a dimensão humana. O trabalho de angulação busca outros domínios, especificamente, na cena em que trabalha por um certo tempo o quadro em ângulo ascendente sobre a fachada de uma casa depois que a personagem passa em frente, como qualquer outro objeto. Sutilmente, em outros momentos, a câmera ajusta-se a outros vieses óticos, ao focar a paisagem por sobre um poste (plano transversal), a rua como ao avesso (plano oblíquo) e a jovem caminhando pelo mundo rural (plano independente). A realidade de suas lentes que, em nenhum instante, reproduz o mundo histórico, chega ao extremo quando acompanha, fisicamente, a moça que sai da cadeia pela estrada deserta. Aparentemente acessório de um registro, em Limite, a câmera desloca-se ao mesmo tempo em que a personagem se movimenta. Repentinamente, esta sai de quadro e, como se tivesse vida própria, a câmera avança solitária, tendo apenas o horizonte à frente para, em seguida, procurar o objeto de sua observação posta sobre a cerca de arame.

Em Limite, independente como recurso narrativo, a câmera, a cada sequência, centra seu foco na realidade do seu mundo, observando personagens e ações dentro da perspectiva eminentemente cinemática. Portanto, ao avançar e recuar em direção ao chafariz e intensificar a dor da personagem de Taciana Rey no desespero de seu olhar para a infinitude do mar (plano móvel), o trabalho de Mário Peixoto nos coloca sempre diante de um filme e não, especificamente, de uma história. Em seu bojo, os homens transformam-se em fantasmas, silhuetas e sombras, quando, próximo ao final, a cadeira em um cômodo se torna o ponto central da cena, da mesma forma que, em outros momentos, a centralidade da imagem é o vento sobre uma rua deserta tomada por chapéus que correm sobre suas calçadas, uma janela e porta que se fecham, o esqueleto de galhos e árvores secas, o casco, a hélice e o leme de um barco. No entanto, é como filme antigo que, em Limite, se impõe o mito da obra, fisicamente, riscada pelo tempo e marcada por cenas ausentes. Em um dado momento, a inserção da cartela no negativo (plano ausente), que substitui e informa a ação inexistente, causa um impacto tão forte e intenso quanto o poder da imagem do barco à deriva, onde todos os corpos são inertes em suas limitações, incapazes de parar a moagem do tempo e a memória das últimas ações de suas vidas – imagem recorrente, que se desenvolve no decorrer das sequências e se compõe como uma espécie de estrutura circular pelo retorno a sua materialidade, como os abutres que abrem e, emblematicamente, encerram o filme.

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