O túmulo de Erza Pound

Bem, parece que a era dos blogs já se há ido.

Encerro este aqui com uma última postagem sobre a visita ao túmulo de Erza Pound, em Veneza.

A visita ao túmulo de Ezra Pound foi certamente o momento mágico da minha estadia em Veneza. Estive na cidade a semana passada para realizar uma leitura no colóquio 'Transmedialità in ambito iberico', organizado por Enric Bou, professor catalão na Università Ca'Foscari, notorio especialista em poesia concreta brasileira e entusiasta da arte de vanguarda. De forma que o ambiente, o tema e a cidade coincidiam perfeitamente para aquele encontro com o poeta que mais impactou minha maneira de ver e fazer a poesia. O 'Cimitero di San Michele' é todo uma ilha, belíssima por sinal, e só se chega ali de barco. Lá estão, também, os túmulos de Stravinki e de Brodsky, entre outros. Já no barco, vi que muitos traziam flores para seus mortos e eu, um inapto em matéria de mortos, para não chegar de mãos abanando diante do mestre, arranquei uma pequena flor amarela de um dos canteiros na entrada do cemitério e levei como minha única oferenda. Passamos algum tempo (bastante, diga-se) buscando o túmulo de Pound no pequeno quadrante protestante. Esse tempo pareceu - e talvez fosse - uma espécie de prova, onde só os de coração puro poderiam passar. Devido a algumas impurezas no coração e algo de colesterol, foram quase quarenta minutos de buscas, com idas e vindas a administração. Na nossa última investida, ouço a voz de Vik dizer: "aquí está". E, efetivamente, ali, entre os arbustos de um pequeno jardim, estava o que um dia foi o poeta sob uma discreta placa de mármore onde constava apenas o seu nome. Ao lado dela, uma placa similar com o nome de sua mulher, Olga Rudge. Havia uma rosa já ressecada cuidadosamente colocada sobre o mármore, a qual não tive pudor em ajuntar a minha humilde flor amarela. Foi imediatamente após esse ato que algo aconteceu e tive uma tontura que me fez ficar com as pernas trêmulas. Como que puxado para baixo, sentei diante do túmulo e me entreguei a um silêncio durante alguns minutos. Eu não esperava por isso, mas naquele momento, eu senti que se eu falasse, me movesse ou esboçasse qualquer reação eu começaria a chorar - logo eu, que me vanglorio de ser tão durão. Assim foi que simplesmente me mantive em silêncio. Por um tempo que, se por fora não deve ter sido muito, por dentro era uma eternidade. Fiquei ali, sentado, apenas olhando para a lápide, sem pensar em absolutamente nada que não fosse em ficar ali. Foram anos até esse encontro, que antes só havia se dado por versos e biografias. Agora, entretanto, eu estava diante de alguma coisa real na vida do poeta, distante no tempo, mas próximo no espaço. Ou o mais próximo que podia. Não era a primeira tentativa. Uns oito anos antes, eu havia visitado a casa onde ele morou em Londres. Mas, claro, além da placa azul colocada pelas autoridades na fachada da casa, pouco sobrava do Pound ali. Nesse meio tempo, Vik deve ter se entediado, porque quando recobrei forças e olhei para ela, vi que fazia fotos de mim e dos túmulos à volta. Um pouco desconcertado, segui com meu plano, peguei os livros que havia trazido e me pus a ler. Primeiro, alguns dos fragmentos de os 'Cantos Pisanos' num italiano amacarronado, tal como anos antes Pasolini lhe havia lido no seu italiano nativo. Depois, entoei alguns dos poemas apócrifos, para pedir a benção, claro, e para que ele soubesse. Já antes de me despedir, pedi que Vik fosse adiante e ali, a sós com Ezra e Olga, fiz uma longa despedida, cheia de emoção e reverência. Beijei a lapide deles com as mãos e parti sob aquele silêncio monumental de um cemitério em meio ao mar. Mas não seria o nosso último encontro. Estive na rua onde ele viveu, buscando sua casa, sem muito sucesso. E não seria mais do que isso se dois dias depois, pouco antes da minha leitura na universidade, eu não encontrasse mais o meu exemplar dos "Poemas apócrifos". Vasculhei todo o quarto do hotel, malas e bolsas para compreender que havia possivelmente esquecido no cemitério. Para as diversas explicações disso ter acontecido, fiquei entre o ato falho - desejo de uma oferenda mais potente que a flor amarela -, e a reinvindição por parte do miglior fabbro para dar uma olhada mais atenta ao livro - o que talvez não fosse boa ideia, já que ele era extremamente exigente. O fato é que no dia da minha partida, voltei à ilha dos mortos e ali estava o exemplar, intacto, exatamente onde o havia deixado dias antes. Pedi licença mais uma vez ao poeta e recuperei meu livro. Poderia tê-lo deixado ali, como oferenda perpetua, mas todas as anotações para uma segunda edição se perderiam. Ademais, já não posso dizer que esse exemplar não tem história. Sentei mais uma vez diante da placa de pedra e me despedi pela última vez do velho Ez. Até a próxima, eu disse, antes que absolutamente nada de extraordinário acontecesse, além daquela quietude taoísta. E eu saltei de volta para Budapeste num gesto de teatro nô.






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