Márcio-André, ensaiando radioatividades - por Paula Cajaty

Ainda lembro quando houve a explosão do acidente nuclear de Chernobyl. O Brasil flertava comercialmente com os comunistas e produzia carros a álcool que não funcionavam nos dias frios. Naquela época, os russos prometiam um carro que substituiria o Fusca, traziam à minha mesa um leite bem melhor que o da Nestlé. Mas este acidente foi o evento determinante que levou, paulatinamente, à derrocada do regime socialista e à queda do Muro de Berlim, assumindo as mesmas proporções, para comparar com eventos mais recentes, que a queda das Torres Gêmeas em Nova Iorque.

Enfim, naqueles tempos achávamos que o mundo ia acabar - e não esquentar até o mar engolir todo pedaço de terra, como hoje. Era verdade que a sombra do acidente nuclear formava dúvidas na soleira das nossas casas, especialmente no Rio de Janeiro – afinal, era bem em Angra dos Reis que foram instalados dois reatores nucleares em pleno funcionamento (e o Pinguelli vivia dizendo que a cobra ia fumar ali...).

Márcio-André parte de questionamentos como esses, da dúvida essencial sobre o não-lugar, da negação do espaço, das contaminações eternas entre energias e faz uma literatura renovada onde os ensaios, para serem levados a sério, não precisam tratar de autores dos séculos XVIII e XIX, como anda em voga mais ultimamente. Seus ensaios são pós-Chernobyl, pós-Guerra Fria, são escritos que registram o que aconteceu conosco, que estamos vivendo e assistindo a tudo desde então.

O autor, de mochila em punho, parte da poética das casas – até lembrando um pouco 'A casa toda nave cega voa', bela construção de Álvaro Miranda –, parte de seu olhar sobre as ruas e sobre os bairros, sai de sua cidade natal, reunindo textos de seu blog, entrevistas, escritos e crônicas, impressos ou virtuais e todas as demais manifestações escritas com excertos de seu pensamento complexo e atual, em busca de uma compreensão desse tempo de agora, sem parâmetros ou referências longínquas. E munido de tudo isso, inicia uma viagem improvável para um encontro com a Poesia em Prypriat.

Alguns resenhistas o criticaram - e muito -, e é preciso confessar que eu mesma briguei com várias partes do texto ao tropeçar em proposições contrárias às minhas crenças, ou ainda ao encontrar proposições que conflitavam com outras, do próprio autor.

Foi um texto difícil, sem dúvida, pois no livro se fincam concepções ainda não firmadas como versões historicamente aceitas, na medida em que a própria História ainda não se decidiu por uma versão específica e aceita dos anos 80 para cá, considerando que Ela ainda se desenrola ao tempo que releio este livro, faço a resenha, peço ao Google que atenda aos meus pedidos de 'quero dar meu coelho', assisto 'Pânico na TV' para rir da insônia, vejo 'Maisa' no 'Sábado (des)Animado', ou registro a manchete do jornal que fala do último paredão do Big Brother.

'Ensaios radioativos' são essas contaminações do que há janela afora. É o dia de hoje e o de ontem a movimentar nossos desejos, nossas vontades, nossas conexões neurológicas, sem que possamos nos dar conta de que isso será um profundo objeto de estudo no amanhã - se e quando ele chegar. Os ensaios de Márcio-André são pós-modernos, pós-concretos, pós-contemporâneos, pós-informáticos, pós-internéticos, aliás, eles são pós-tudo e por isso têm a rara audácia de reunir o olhar do homem aos trinta anos contemplando a primeira década do século XXI.

Em 'Ensaios', Márcio discorre sobre a existência virtual após a morte, se permite tangenciar a sociedade da estética, vagueia entre Google e Pânico na TV, e vai dissecando os vastos conteúdos desse possível nada-conceitual que nos cerca, zappeando tudo o que lhe perpassa. Suas proposições conflitantes, referidas pela resenha de Francisco Bosco, são nada mais do que o fruto desse tempo conflitante em que estamos, onde não há uma verdade, não há um dogma, e tudo são possibilidades.

Márcio-André se abre para essas possibilidades, desenvolve um pensamento lúdico e libertário, democratizando a literatura e trazendo o 'hoje' para dentro dela, e longe de seu conteúdo semelhar a um blog recheado de umbiguismos, o poeta encontra finalmente um lugar para fazer o que se duvida. Encontra o espaço para o improvável. Encontra um lugar para ser e fazer o que ele próprio duvida, o que ainda é mais estranho e assombroso.Também eu queria vaguear pelos guetos da Europa, descobrindo cada tijolo carcomido pelo tempo, também eu queria dormir na livraria Shakespeare&Co. feito quem se amarra apenas aos seus sonhos, ou caminhar numa cidade vazia como se explorasse um terreno baldio e cheio de mistérios.

O autor, em seus Ensaios duvida de si mesmo e busca as respostas para suas dúvidas mais cruéis. Para isso, ele usa as coisas, seus instrumentos, da forma como sabe, sem preconceitos e pre-julgamentos, quase como uma criança, e descobre, assim, novos usos para as coisas que estão à sua espera. Nessa busca das respostas que precisa, ele aprende a pensar através das coisas, atravessa as coisas para além delas mesmas, e assim liberta-se de todo e qualquer paradigma, assumindo uma postura iniciática e, por fim, poética.

Márcio-André é realmente um poeta mediúnico, que escuta o antes, escreve através e, atravessando, chega à terceira margem de tudo, abrindo janelas e encontrando significado em tudo à volta. 'Ensaios radioativos' não é um livro que termina, mas que começa; não é um livro que se degrada, mas que se mantém ativo, radioativo, irradiando energia e dúvidas para que possamos também partir numa viagem de ida, em busca de nossas próprias respostas.

Eu já aprontei a minha mala. Vamos?

4 comentários:

Anônimo disse...

Não passa de um engodo este tal Márcio-André.

Márcio-André disse...

Comentário perspicaz! É fato: a humanidade nasceu para engodo. Todos queremos fugir dessa condição. Eu mesmo o queria, mas tenho muita dificuldade em não assinar os meus textos e comentários...

Anônimo disse...

Oxente, meu rei: para que falar assim do anônimo acima, quer dizer: de si próprio, que essa diferença entre nome e anonimato, eu e outro, é mera invenção aristocrática e faz cegar-se para o real, que não passa de ficção!

Márcio-André disse...

Esse anônimo está me cheirando a Ronaldo Ferrito...

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