Ensaio aborda o filme Cidade Reposta

Tive uma grata surpresa ao receber do escritor Artur de Vargas Giorgi a indicação para seu texto "Riscar a cidade, riscos"/ "Rayar la ciudad, rayas". Esse belo ensaio, publicado em formato bilíngue na revista INTERARTIVE nº21, debate obras que, por sua vez, abordam a questão da cidade, em sua possibilidade de risco e poesia. Uma das obras refletidas pelo ensaio foi o meu filmeco Cidade reposta, realizado com uma câmera fotográfica e exibido esse ano no Festival Tordesilhas, aqui em Lisboa. O que me deixa realmente contente é que Artur consegue compreender, como poucos, a situação paradoxal exibida no filme, onde uma cidade é parte ao mesmo tempo fundante e fundada de cada indivíduo. Na verdade, ele vai além: esboça uma hermenêutica para compreender como se dá este "paradoxo" e percebe aí a necessidade de fuga das hierarquias vigentes (sujeito x objeto, indivíduo x todo, cidade x citadino) para pensar a questão. Texto realmente comovente e dotado de rara inteligência.
Deixo, abaixo, o fragmento em português e espanhol do texto. Aproveitem:


Prolifera a cidade em sonho. Também no Rio de Janeiro, Márcio-André registra seu curta-metragem Cidade Resposta (2010). Agora, contudo, o corpo – enquanto identidade ou integridade – aparece de maneira diversa. Na verdade, ele desaparece. Eu vejo apenas o que os seus olhos veem, e, nesse sentido, eles oferecem a cidade de dentro: é sobretudo a cidade, no limite impreciso entre o dentro e o fora do corpo, que primeiro o habita; é a cidade que está no corpo ou que o deseja, antes de ele estar na cidade ou de desejá-la. Diz o belo texto de Márcio-André: “Tudo tem seu modo de ser na conjuntura que levou aquele corpo urbano a ter determinado desenho, mas esses elementos já fazem parte do que a cidade escolhe para si mesma. [...] Há algo que prescinde de qualquer planejamento humano, uma conjuntura interna do sentido da pólis, um vir a ser cidade, como se todo ato para consolidá-la fosse desde sempre o desejo dela própria”.

Tal condição, que arriscaria o sujeito em sua diluição, é, no entanto, a própria formadora dessa espécie de subjetividade aberta, informe, na medida em que as imagens transportam a ambivalência do contato: a cidade, pelo que ela escolhe para si mesma, deixou suas impressões no autor, mas isso só pode ser visto com os olhos dele, olhos que se projetam sobre a cidade com seu toque singular. Ou seja, o sujeito é formado por esses vestígios e também os forma; ele, com a cidade, esse seu “órgão externo”, é, enfim, a resposta.

Em um primeiro momento, eu diria que essa abertura se dá – paradoxalmente – através da atenção meditada ao inconsciente, ao que escapa às hierarquias e às promessas de ordenação e planejamento: “O sonho é o que faz ligação entre os elementos urbanos, entre as camadas de metrô e as galerias de esgoto. Pela manhã a cidade é reposta. Permanece sonho aquilo que de tão incompleto não chega a realizar-se. Cada pedacinho de rua, de calçada das casas e dos bairros está ali porque alguém o sonhou”.

Mas insisto: há todo um apelo para o desfazimento da pretensa suficiência humana, da sua suposta primazia, apelo traduzido no texto, nos planos que se polarizam sem equilíbrio – ora fixos e leves, ora moventes e vertiginosos – e, principalmente, na escolha das cenas: a cidade de Márcio-André é feita mais de contraste de espaços, tempos e tons do que de contato de pessoas; é feita mais de vento do que de respiração; mais de luzes do que de olhares. Como se tudo fosse dado à revelia do homem, mas com ele; ou como se o homem fosse, realmente, apenas mais uma coisa vivente, uma coisa finita entre outros corpos-cidade de extensão sem fim. Esta, então, a cidade que habita a sua natureza mesma. Riscá-la: algo simultaneamente simples e complexo como sonhar – e ser sonhado – de olhos abertos.


Prolifera la ciudad en sueño. También en Rio de Janeiro, Márcio-André registra su corto-metraje Cidade Resposta (2010). Ahora, sin embargo, el cuerpo – en tanto que identidad o integridad – aparece de manera diversa. En realidad, él desaparece. Yo veo apenas lo que sus ojos ven, y, en ese sentido, ellos ofrecen la ciudad de dentro: es sobretodo la ciudad, en el límite impreciso entre el interior y el exterior del cuerpo, que primero lo habita; es la ciudad que está en el cuerpo o que lo desea, y no a la inversa. Dice el bello texto de Márcio-André: “Todo tiene su modo de ser en la coyuntura que llevó aquel cuerpo urbano a tener un determinado diseño, pero esos elementos ya forman parte de lo que la ciudad elije para sí misma. [...] Hay algo que prescinde de cualquier planeamiento humano, una coyuntura interna del sentido de pólis, un llegar a ser ciudad, como si todo acto para consolidarla fuese desde siempre el deseo por la propia ciudad”.

Tal condición, que arriesgaría al sujeto en su disolución, es, sin embargo, la propia formadora de esa especie de subjetividad abierta, informe, en la medida en que las imágenes transportan la ambivalencia del contacto: la ciudad, por lo que ella elige para sí misma, ha dejado sus impresiones en el autor, pero eso sólo puede ser visto con sus ojos, ojos que se proyectan sobre la ciudad con su toque singular. O sea, el sujeto se forma a través de esos vestigios y también los forma; él, con la ciudad, ese su “órgano externo”, es, pues, la respuesta.

En un primero momento, yo diría que esa abertura existe – de manera paradójica – a través de la atención meditada del inconsciente, de lo que escapa a las jerarquías y a las promesas de ordenación y planeamiento: “El sueño es lo que permite la conexión entre los elementos urbanos, entre las estaciones de metro y los canales de desagüe. Por la mañana la ciudad es repuesta. Permanece en el sueño aquello que de tan incompleto no llega a realizarse. Cada trocito de calle, de acera de las casas y de los barrios está allí porque alguien lo ha soñado”.

Pero insisto: hay todo un reclamo para deshacerse la pretendida suficiencia humana, de su supuesta primacía, reclamo traducido en el texto, en los planos que se polarizan sin equilibrio - fijos y leves, o móviles y vertiginosos – y, principalmente, en la elección de las escenas: la ciudad de Márcio-André está hecha más a partir del contraste de espacios, tiempos y matices que del contacto de personas; está hecha más a partir del viento que de la respiración; más de luces que de miradas. Como si todo fuese dado a la rebeldía del hombre, pero con él; o como si el hombre fuese, realmente, apenas una cosa viviente, una cosa finita entre otros cuerpos-ciudad de extensión infinita. Está, entonces, la ciudad que habita su naturaleza misma. Ráyala: algo al mismo tiempo simple y complejo como soñar – y ser soñado – con los ojos abiertos.

Fonte: Revista Interartive

Texto na íntegra em espanhol e em português. Para quem não viu o filme, fica aqui o link.

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