Octavio Paz - Sobre a Crítica


(Publicado na edição Nº 25 da Revista Confraria - 1ª edição impressa)

Não existe dúvida de que a crítica é o ponto fraco de uma literatura hispano-americana. Assim como da espanhola. Não é que faltem bons críticos. Eu citaria dois da América, e que são excelentes, Anderson Imbert e Rodríguez Monegal (sem falar dos mais jovens, como o argentino Enrique Pezzoni e o venezuelano Guillermo Sucre). Mas nós sofremos de um “corpo doutrinário”, ou de doutrinas, ou seja, deste mundo de ideias cujo desdobramento criou um espaço intelectual: o campo próprio de uma obra, a ressonância que a prolonga ou a contradiz. Este espaço é o lugar do encontro de uma obra com outras, a possibilidade de um diálogo entre elas. A crítica é o que constitui o que nós chamamos uma literatura, e que não é mais que a soma das obras, que o sistema de suas relações: um campo de afinidades e de oposições.

Crítica e criação vivem em perpétua simbiose. A primeira se alimenta de poemas e de romances, mas por sua vez, ela é a água, o pão e o ar da criação. No passado, os “corpos doutrinários” eram constituídos de sistemas fechados: Dante era nutrido de teologia, e Góngora, de mitologia. A modernidade é o reino da crítica: não mais um sistema, mas a negação e a confrontação de todos os sistemas. A crítica foi o alimento de todos os artistas modernos, de Baudelaire a Kafka, de Leopardi aos russos futuristas. Ela se tornou mesmo criação: a obra se resume em convocação da negação (Un coup de dés) ou a negação da obra (Nadja). Dentro das literaturas, seja na língua espanhola ou portuguesa, existem poucos exemplos desse radicalismo: Pessoa e sobretudo Jorge Luis Borges, autor de uma única obra, edificada sobre o tema vertiginoso da ausência da obra. A crítica como invenção literária, a negação como metafísica e como retórica. Entre aqueles que vieram depois, exceção feita a Cortázar e, mais recentemente, a Severo Sarduy, eu não encontro em nenhuma parte aquela decisão de construir um discurso sobre a ausência do discurso. O não é um obelisco transparente, mas nossos poetas e romancistas preferem as figuras geométricas menos inquietantes, apesar de serem menos eretas e perfeitas. Nós preferimos as obras extraordinárias fundadas sobre um sim.

Ao se passar da crítica como criação à crítica como alimento intelectual, a indigência se torna pobreza. O pensamento da época – ideias, teorias, dúvidas, hipóteses – vem de fora e se escreve em outras línguas. Nestes raros momentos sem grandes nomes, salvos Miguel de Unamuno e Ortega y Gasset, nós somos ainda as parasitas da Europa. Enfim, se se trata da crítica literária propriamente dita, a pobreza se torna miséria. Esse espaço ao qual eu me refiro e que é o resultado da ação crítica, lugar de união e de confrontação das obras, é para nós uma terra sem homens. A missão da crítica não é de descobrir as obras, mas de as relacionar umas com as outras, de as ordenar, de indicar sua posição dentro do conjunto e em acordo com as predisposições e tendências de cada uma. Nesse sentido, a crítica tem uma função criativa: ela inventa uma literatura (uma perspectiva, uma ordem) a partir das obras. É o que nossa crítica não fez. E é a razão pela qual não existe uma literatura hispano-americana, apesar de existir um conjunto de obras importantes. Pelo mesmo motivo, é inútil questionar, como se faz por vezes, o que é a literatura hispano-americana. É essa a questão que não pode ainda ter respostas. Ao contrário, é urgente que se pergunte como se apresenta nossa literatura, quais são suas fronteiras, sua forma, sua estrutura, e qual é seu movimento. Responder a essa questão torna a colocar as obras em comunicação, seja por nos revelar que elas não são monólitos isolados, estelas comemorativas de um desastre acontecido no deserto, mas que elas formam uma sociedade. Um conjunto de monólogos que constituem, senão um coro, ao menos um diálogo contraditório.

É vão condenar aquilo que peca por falta. Não se deve legitimar aquilo que peca por excesso. Há alguns anos, nossas críticas, notadamente aquelas que merecem destaque dentro dos jornais e revistas, vem cantando as glórias da “grande literatura latino-americana”. O entusiasmo é mais fácil que o julgamento; a repetição, que a crítica. É a moda de hoje – como foi, há quinze ou vinte anos, a de se lamentar sobre a pobreza de nossa literatura. Esta nova e barulhenta atividade “crítica”, quase indiscernível das formas mais vazias de publicidade e que consiste em reformular os modelos fracassados, agora escolhe como cavalo de batalhas o tema do “sucesso dos nossos escritores, sobretudo os romancistas, no estrangeiro”. Eu diria inicialmente que esta palavra, sucesso, me indispõe: ela não participa do vocabulário da literatura, mas daquele dos negócios e do esporte. Em segundo lugar, a voga das traduções é um fenômeno universal e que não concerne somente à América Latina. É uma consequência do aumento do número de tarefas das editoras, um epifenômeno da prosperidade das sociedades industriais. Ninguém ignora que os editores percorrem os cinco continentes, desde as cabanas de Calcutá até os rios de Montevidéu, passando pelos bazares de Damasco, em busca de manuscritos de romances. Uma coisa é a literatura e outra a edição. Enfim, a atitude desses críticos se assemelha àquela da burguesia de vinte anos atrás, que não bebia uísque ou champanhe, e na qual as mulheres só se vestiam com roupas parisienses. Parece que, para uma obra ser levada em consideração, é necessário receber inicialmente a bênção de Londres, de Nova Iorque ou de Paris. A situação seria cômica se ela não implicasse uma renúncia. A jurisdição da crítica é a linguagem. Aí, renunciar é renunciar não somente ao direito de emitir uma opinião, mas ao uso mesmo da palavra. É uma abdicação total: o crítico renuncia a julgar aquilo que se escreve dentro da própria língua. Eu me nego à utilidade e mesmo à necessidade da crítica estrangeira: para mim, as literaturas modernas são uma só literatura. E como esquecer que, por vezes, aqueles de fora veem aquilo que não veem os filhos da casa? É natural, mais que lamentável, que a crítica estrangeira corrija, parcialmente ou por inteiro, as omissões e a cegueira da crítica hispano-americana. Caillois não descobriu Borges, mas ele fez o que nós não fizemos – nós que admiramos esse autor – quando ele era um escritor pouco lido (o que ele, no fundo, sempre foi): lê-lo dentro de um contexto universal. No lugar de repetir mecanicamente aquilo que escrevem os anônimos das revistas de Chicago ou de Milão, os críticos deveriam ler nossos autores como Caillois leu Borges: a partir da tradição moderna e como parte dessa tradição. Duas tarefas complementares: mostrar que as obras hispano-americanas são uma literatura, um campo de relações antagônicas: descrever as relações que essa literatura mantém com as outras.


Diz-se frequentemente que a insuficiência de nossa crítica mantém um caráter de dependência e de marginalidade de nossas sociedades; dir-se-ia um dos efeitos do “subdesenvolvimento”. Uma tal opinião faz parte dessas meias-verdades que são piores que mentiras. O famoso “subdesenvolvimento” não impediu Rodo de escrever um bom ensaio crítico sobre Dario. Sem dúvida, a literatura só se desdobra no seio de uma sociedade quando ela não é uma entidade impermeável à história. A literatura é uma relação social, mas uma relação irredutível a outras. Parece-me mais justo ver dentro da dispersão de nossa crítica uma consequência da falta de comunicação. A América Latina não dispõe de um centro à maneira de Paris, Nova Iorque ou Londres. No passado, Madri não assumiu essa função nem bem nem mal (mais mal que bem). Lá foram reconhecidos e consagrados Dario, Reys, Neruda e alguns outros. E nós não tínhamos ainda perdoado os espanhóis por terem desconhecido Huidobro e Vallejo (como se nós mesmos houvéssemos sido um modelo de generosidade com estes autores: o segundo morreu no exílio e um dos últimos livros de Huidobro se intitula, de maneira significativa, Cidadão do esquecimento). A guerra civil da Espanha fez de Buenos Aires e do México os herdeiros de Madri. Foram ambas capitais literárias, mas sobretudo foram centros de revoltas cosmopolitas e antiespanholas, o modernismo e a vanguarda. Um centro literário é um sistema nervoso sempre em destaque, mas nem Buenos Aires nem o México mostraram uma grande sensibilidade face ao resto da América. O espírito europeu na Argentina e o nacionalismo mexicano são formas diferentes de uma mesma doença: a surdez. Sem dúvida, as coisas se transformaram um pouco nestes últimos anos e mudarão cada vez mais. Por outro lado, outros centros começam a se formar, sem vontade frequente de hegemonia, e testemunham todos uma sensibilidade aberta: Havana, Caracas, Montevidéu, Santiago, Lima. Bogotá mesmo, cidade muito fechada, e até Manágua, feudo do sinistro Somoza, surgem com revistas e grupos que se definem por sua vocação latino-americana. Ainda que os meios de informação estejam quase sempre nas mãos dos ditadores, da burocracia e de empresas, a comunicação se estabelece e se torna pouco a pouco uma realidade caótica, mas viva. Se a literatura não é comunicação – talvez seja mesmo o contrário: o “colocar em questão” da comunicação –, ela é realmente um dos seus produtos. Um produto contraditório. A crítica tem a mesma atitude ambígua diante da comunicação. Sua missão não é tanto de transmitir as informações, mas de as filtrar, de as transformar e de as ordenar. A crítica opera por negação e por associação: ela define, isola e coloca depois em relação. Eu diria mais: em nossa época, a crítica funda a literatura. Dentro da medida em que esta última se constitui como crítica da promessa e do mundo, como questão trazida por ela mesma, a crítica concebe a literatura como um mundo de palavras, como um universo verbal. A criação é crítica e a crítica, criação. Ao contrário, nossa literatura perde o rigor crítico e nossa crítica, imaginação.


tradução de Denise Borborema

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