RESPOSTA AO FRANCISCO BOSCO
Caderno Prosa & Verso (jornal O Globo, 08/03/2009)
Não tenho problemas em receber críticas negativas a meu trabalho. Sempre fui partidário da teoria de que uma opinião divergente é sempre mais útil e por vezes mais sincera, motivada por certo incômodo mais radical, mais primitivo e por isso mais autêntico, sendo fundamental para a caminhada de todo escritor ou artista. Essa crítica negativa, quando honesta, é fruto de um envolvimento profundo do crítico com a obra e merece respeito. Diante disso, eu me sentiria obrigado, desde já, a agradecer a esmerada resenha aos meus Ensaios Radioativos publicada pelo Francisco Bosco no Prosa & Verso da semana passada (21/02).
Mas, apesar de toda a atenção dispensada ao livro, o que constatamos é que o resultado nem de longe procede de um exercício crítico. A resenha em questão me soa meramente vexatória. Intitulada ironicamente de “Afirmação poética da vida”, a resenha parece ter o único objetivo de criar um mal estar sobre o livro e é explícita, do subtítulo à legenda da foto, a intenção de desqualificá-lo por meios espúrios. Tal impressão não me seria tão evidente se a crítica se resumisse a aspectos do livro enquanto obra literária e não a fatores externos (os quais imiscui com a obra), numa antiga prática de desqualificar um discurso através de armadilhas retóricas. A própria decisão de abrir o texto apontando os pontos positivos do livro, nada mais é que um antigo recurso para dar a sensação de neutralidade. Mas basta passar essa parte inicial para notar que estamos diante de um festival de má vontade: por pura má vontade, desloca fragmentos do livro de seu contexto e o entrega, acrescido de um julgamento seu, ao leitor do suplemento que, sem o acesso ao mesmo, jamais poderia perceber originalmente do que se trata. Por má vontade, o crítico confunde argumentação teórica com “autopromoção” e ironia com “vaidade”.
Pois, no que concerne à crítica efetiva (tirando a parte elogiosa), só há um momento em todo o texto que se refira de fato a algo contido no livro: o momento em que ele afirma erroneamente que eu me aproprio do conceito de “escuta” do filósofo alemão Martin Heidegger. Nota-se que o crítico escolheu, para falar disso, o texto que aborda as relações epistemológicas entre Heidegger, Pound e a física das partículas, e que portanto traz diversas citações do pensador alemão, não sendo elas necessariamente conceitos meus e nem apropriados por mim. Para completar, ele conclui demonstrando ter reconhecido algumas das teorias subjacentes ao pensamento do livro, entre elas a da hermenêutica e a dos estudos culturais, sendo lamentável, entretanto, como já as enquadra em categorias estanques, que se anulariam impossibilitando qualquer diálogo entre si, como se qualquer conceito delas aproveitado evocasse inevitavelmente a totalidade de seus pressupostos e ao mesmo tempo suas previsíveis e engessadas conclusões. Um dos focos da crítica do livro Ensaios Radioativos é justamente o pensamento puramente epistemológico adotado por intelectuais propensos às segmentações teóricas e limitado em questões meramente disciplinares, que ocultam, por baixo de uma carapuça de intelectualidade e erudição, uma pobreza de pensamento sem limites. O que, na minha opinião, consiste em total incapacidade de prever ou conceber algo novo, evidenciado na aparente incapacidade do crítico vertente de perceber uma alternativa filosófica a partir de teorias que as cartilhas lhe ensinaram serem antagônicas. Caso sua leitura fosse mais atenta, ele certamente encontraria a tal diferença, seu “critério para a avaliação de uma obra crítica”, que tanto procurava. Essa se encontra justamente no real debate do livro, em nenhum momento comentada por ele: a indeterminação entre ficção e realidade. Mas aqui também fiquei perplexo, pois, em meio parágrafo, o resenhista classificou Heidegger como filósofo imanentista e (não sendo um conceito meu) encerrou as falhas e consequências do conceito de “escuta”, resolvendo de modo sumário problemas colocados por um dos pensadores mais debatidos e contraditórios do séc. XX, problemas que, ainda hoje, comovem os mais renomados filósofos.
Mas, infelizmente, essa é a única tentativa, em todo o texto, de desqualificar o livro pelo viés do pensamento. O resto da resenha é uma desastrosa sucessão de zombarias que não dizem respeito ao livro propriamente. Ora, confundir o discurso interno do livro com a orelha demonstra um estranho desconhecimento das diferenças entre o trabalho do escritor e o do editor, esse último muitas vezes é obrigado a se adequar a recursos de marketing, impostos pelo mercado. Isso nada tem a ver com vaidade ou se ter em alta conta. E, apelando a um exercício básico de abstração, pergunto: se a capa do livro se rasgasse ou se fosse feita outra edição do livro, o texto perderia ou ganharia qualidade?
Há ainda outros casos que não acho necessário comentar, pois parece depor mais contra o próprio Francisco que contra o meu livro. Tenho que lembrar ainda que ele, pouco antes da publicação da resenha, escreveu, em outro periódico, um comentário sobre o mesmo livro, onde já destilava a mesma má vontade, a partir de uma pueril teoria sobre o provincianismo brasileiro. No outro caso, preferiu não citar o nome do livro, somente fragmentos, segundo ele “para não dar excessiva importância ao autor”. Questiono-me, diante dessa frase pernóstica, quem afinal se tem em alta conta para sentir-se no papel de a quem conferir ou não importância.
O saldo de minha avaliação é que o sr. Francisco me parece ter ficado um tanto incomodado, e certamente tocado, pela crítica contida em meu livro. Eu já esperava que os Ensaios Radioativos suscitassem reações extremas, visto que descrevem um ambiente de extremos, mas não imaginei que pudessem despertar discursos tão apaixonados, ainda que inconsistentes. Diante da territorialização, o escritor territorializador demarca o seu campo e assim vão se delimitando as fronteiras, a tomada dos canais, o mapeamento para as próximas gerações de a quem pertencem os terrenos entre os “intelectuais” cariocas. E, nesse aspecto, prefiro manter-me à parte. O território é grande, porém que fiquem com todo ele.
Coimbra, 26 de fevereiro de 2009
2 comentários:
Muito bem, Márcio! Esse crítico é um babaca. Sempre achei ele detestável e fico feliz que alguém tenha dado um sacode a poeira nele.
Um raio X perfeito, Marcio, desse "ensaísta de saiote rococó".A Monica disse tudo: um babaquara.
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