Contaminações (para a mesa de abertura da Flap Rio 2007)

Publicado originalmente na Cronópios


Para começar a falar de “contaminações” vou relatar uma viagem e uma performance recente que realizei. No dia 22 de junho último, isto é, há pouco mais de um mês, contrariando todos os conselhos de amigos, médicos e parentes, peguei um avião de Paris para Kiev, na Ucrânia, e de lá parti de carro, com um guia e mais duas pessoas, para Pripyat, a cidade fantasma onde houve, em 1986, a famosa catástrofe de Chernobyl. Era uma viagem cheia de riscos, claro. Na cidade, a mais afetada pelo acidente, não se pode morar, não se pode comer, não se pode ficar muito tempo. Ali estávamos expostos a uma média de 130 microroetgens por hora de radiação gama, proveniente do césio 137 que paira no local. Isso nos permitia ficar, no máximo, duas horas. Ficamos quase quatro. Apesar de não ser uma cidade propriamente turística, sua arquitetura uniforme, remanescente do antigo bloco comunista, seus edifícios em ruínas e de arestas enferrujadas, os objetos contaminados, deixados pelos moradores há vinte anos, as ruas invadidas pelo mato causavam um estranho fascínio. Em determinado momento, avisei que eu precisaria me afastar do grupo por quinze minutos e diante do Palácio da Cultura, bem no centro da antiga cidade, realizei a primeira (e provavelmente única edição da) Conferência Poético-Radioativa de Pripyat. A Conferência contava com abertura solene, leitura de poemas meus e de Paul Dehn, poeta que muito escreveu sobre a loucura atômica, e com o “abandono” de alguns livros no lugar. Ali, na solidão daquela conferência de um homem só, a milhares de quilômetros de qualquer coisa familiar, circundado pelo silêncio do fim do mundo, ainda que sem saber, eu fazia um hino às contaminações, além, claro, de me contaminar, tornando-me, provavelmente, o primeiro poeta radioativo do Brasil. Sim, haviam me alertado do risco de desenvolver um câncer ou gerar um filho anormal, mas pergunto: não faria isso também parte da performance?
Esta experiência de contaminação, fantástica, mas real, e por isso ainda mais fantástica, fez-me perceber, entre outras coisas, que somos seres essencialmente em contaminação. A palavra contaminação vem do latim “contaminatio”, que por sua vez é uma variação de “contamino”, que designava a prática da contaminação, isto é, o ato de fundir em um só, várias comédias ou contos. Por extensão, veio a sugerir o sentido de “entrar em contato” e, só posteriormente, o sentido pejorativo de “sujar, infectar, manchar”.

O interessante neste mergulho etimológico é perceber que a palavra “contaminação” tem um sentido muito mais amplo para nós que a palavra “influência”, por exemplo. Primeiramente porque é uma palavra, já em sua origem, do âmbito literário; segundo, porque falar que um artista é contaminado por alguma coisa ou alguém está muito mais próximo ao que realmente acontece quando se está exposto a um corpo estranho. A contaminação não parte de um princípio de troca hierárquica entre um contaminador e um contaminado: na verdade, ambos se contaminam mutuamente. E aqui some todo o sentido de linearidade e o sentido clássico do ensinamento professoral. Afinal, como diz Guimarães Rosa, professor não é aquele que, de repente, aprende? Logo, não creio ser absurdo aceitar o fato de que uma obra antiga como Os Lusíadas possa ser contaminada por uma moderna como, por exemplo, a de Mário de Andrade. Se regredirmos um pouco mais neste caminho, vamos perceber que a palavra “contaminação” vai ao encontro mesmo da física das partículas, ao mostrar que tudo faz parte de uma só coisa. Ora, só podemos ser contaminados por algo que já esteja dentro de nós, ainda que em estado de latência. A radiação gama só pode alterar a composição molecular das células de alguém porque são também as células compostas de isótopos radioativos. Em outras palavras, somente entes atômicos podem ser afetados pelo átomo. É impossível negar: somos seres em eterna contaminação, mutantes por natureza. Temos, todos e tudo, a mesma base material e elétrica e não sabemos precisamente onde começamos e terminamos.

Em nossa história de segmentações, como tentativa de fundamentar a subserviência da obra ao ego, fomos obrigados a acreditar que todas as linguagens artísticas são coisas estanques, com possíveis maneiras de se inter-relacionar. Palavras como “interdisciplinaridade”, “intercessão” e “inter-relação” não fazem mais que reafirmar essa separação. “Relação com” e “influência de” sempre pressupõem “separações entre”. Por que então falar em influência ou relação – vias de mão única – e segmentar tudo para depois tentar reaproximar? Para mim, tudo se resume a uma única complexidade, bem simples – tudo é parte de tudo e só pode ser à medida que não o precisemos. Toda obra, não importa quem a produza, faz parte da Obra, que é a própria humanidade. Não devemos falar então de reaproximações, mas do que antes e agora e sempre nunca foi qualquer outra coisa que a mesma coisa. A meu ver (e ao ver dos Antigos) nunca houve separação entre música, poesia, teatro, dança e pensamento. Todas são uma única coisa que pode se apresentar com diversas formas materiais.

Então, se não há influências, há toda a possibilidade de contaminação. Nada é estável, tudo está em movimento e se movimenta a partir das contaminações; substanciais, temporais, locais, nascíveis e perecíveis. Temos a mesma fluência da rocha – nenhum ato é desconsiderado e nada, no estado das coisas, é desvencilhado. Até os nossos sonhos se contaminam do sonho dos outros enquanto dormimos. O corpo é uma usina de contaminações, um ente biônico que troca com tudo o que está à volta. A própria Morte, um ente sem forma, silencioso, inodoro e incolor, não se contamina de nós para se corporificar no falecimento de alguém?

Eu sonho que uma partícula flui pelas calçadas sonhando a ordem alternativa das coisas no mundo – esta partícula e este mundo nada mais são que a ficção do real – comédias e contos em eterna contaminação. Um “S” é um acaso de “Z” ou um silêncio de dobras. A música é um acaso de poesia, a poesia é um acaso de dança, a dança é um acaso de arquitetura, a arquitetura é um acaso de um acaso. Se desenvolvo um projeto que leva a poesia para o palco é porque o palco sempre esteve sujo de poesia. Se neste projeto a poesia é recitada com elementos de música, é porque a própria música nunca deixou de ser poesia. Se em nossa “performance” usamos rodas de bicicleta e cítaras desafinadas é porque poesia só pode ser dita através destes instrumentos ordinários. Se abandono livros em Pripyat, é porque a própria Pripyat é um verso inacabado. Escrever um poema, executar uma música, fazer uma performance em uma cidade fantasma é um ato corporal por inteiro – isto é, reivindicar no corpo de outra coisa o seu próprio corpo – e se for para desenvolver um tumor, que se desenvolva, ele não é nada mais que o fruto sincero desta contaminação. Não há poesia desvencilhada da vida nem vida desvencilhada da poesia – tudo o que sonhamos é real.

A antiga poesia chinesa, os arabescos (que eram escritas e pinturas ao mesmo tempo), as tragédias gregas, os jograis da idade média, o teatro nô (onde encontramos dança, teatro, música e poesia a uma só vez), o repente, o cordel, os rituais indígenas, os experimentos do concretismo, a poesia visual, a literatura postal, os hiperpoemas, sempre estiveram no âmbito das contaminações. Nunca solicitaram um posto de fusão entre artes – queriam ser um só corpo no próprio corpo. Os situacionistas (ou talvez João do Rio), por sua vez, foram os primeiros a sentir a contaminação das ruas como uma escrita dos pés, proponentes de uma geopoética para além do que sempre se pensou como poético. Talvez já sonhassem com Chernobyl, seu mundo maligno, cheio de pontas e sua radiação medicinal.

Enfim, proponho, para abrir este Evento, cujo tema são as Contaminações, fazermos o exercício de, como diria Caetano, procurar no oculto “aquilo que sempre terá sido o óbvio” e que sonhemos a ordem alternativa das coisas – ainda que tenhamos, todos desta sala, que passar o verão em Pripyat catalogando objetos contaminados. Proponho que esqueçamos tudo o que nos ensinaram nas escolas com seus professores cansados e que ensaiemos o ofício do desconhecido. Que pensemos a arte ou qualquer coisa que seja não como instituição já estabelecida, mas como possibilidades e que, assim, possamos anunciar a “Era das Contaminações”. Proponho que por fim parafraseemos Arquíloco, dizendo: “Possuo uma grande arte - eu contamino, enquanto sou contaminado”.

3 comentários:

Thiago Ponce de Moraes disse...

Esse texto ficou bom mesmo.

Gosto, principalmente, disto:

"Eu sonho que uma partícula flui pelas calçadas sonhando a ordem alternativa das coisas no mundo – esta partícula e este mundo nada mais são que a ficção do real – comédias e contos em eterna contaminação. Um “S” é um acaso de “Z” ou um silêncio de dobras. A música é um acaso de poesia, a poesia é um acaso de dança, a dança é um acaso de arquitetura, a arquitetura é um acaso de um acaso. Se desenvolvo um projeto que leva a poesia para o palco é porque o palco sempre esteve sujo de poesia. Se neste projeto a poesia é recitada com elementos de música, é porque a própria música nunca deixou de ser poesia. Se em nossa “performance” usamos rodas de bicicleta e cítaras desafinadas é porque poesia só pode ser dita através destes instrumentos ordinários. Se abandono livros em Pripyat, é porque a própria Pripyat é um verso inacabado. Escrever um poema, executar uma música, fazer uma performance em uma cidade fantasma é um ato corporal por inteiro – isto é, reivindicar no corpo de outra coisa o seu próprio corpo – e se for para desenvolver um tumor, que se desenvolva, ele não é nada mais que o fruto sincero desta contaminação. Não há poesia desvencilhada da vida nem vida desvencilhada da poesia – tudo o que sonhamos é real."


Abração.

MC disse...

vou comentar no teu blog não, vc não comenta no meu!

você esqueceu de dizer que a radiação de pripyat te curou do teu câncer de heidegger.

Flávia Muniz Cirilo disse...

bem te li:

contaminações - !

posso te adicionar no meu blog?

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