Uma tarde com Fanni e Miklós



Esta simpática senhora comigo na foto é Fanni Gyarmati, viúva do lendário poeta Miklós Radnóti, uma das figuras mais emblemáticas da poesia em idioma húngaro. Com seus 101 anos de idade, Fanni (também conhecida como Fifi) viveu, desde a morte de seu marido, completamente reclusa, raramente recebendo visitas e não dando entrevistas, mesmo na cerimônia de seu centésimo aniversário. Ou seja, é quase impossível um encontro com ela e o meu só se realizou graças a uma amiga comum. Por isso, fiquei muito emocionado em ser recebido ontem por ela (alguns dias depois de coincidentemente visitar o túmulo do poeta no Fiumei úti Nemzeti Sírkert) em seu apartamento na Rua Pozsonyi, diante do Danúbio, e passar uma tarde agradável, conversando animadamente e conhecendo um pouco da vida desta figura que teve um papel tão importante na divulgação e perpetuação da obra de seu marido. Tendo conhecido Miklós ainda na adolescência, Fanni foi sua editora e companheira de trabalho, além de ter sido o tema de seus poemas de amor. Ainda hoje, quase 70 anos depois da morte dele, ela mantém intacto o espaço onde escrevia no mesmo apartamento em que viveram. 

Miklós faleceu em 1944, com 35 anos, executado durante uma marcha forçada de um campo de concentração na Hungria para outro na fronteira da Áustria. Segundo testemunhas, foi atacado a coronhadas por um guarda bêbado, irritado com sua insistência em escrever, para em seguida ser fuzilado em uma vala comum na fronteira do município de Abda. Seu corpo foi exumado dezoito meses depois, e dentro do bolso do seu casaco foi encontrada uma caderneta com seus últimos poemas. Fanni recebeu os manuscritos e finalmente os publicou em 1946, sob o título “Tajtékos ég”. Abaixo, deixo um desses poemas encontrados, em tradução de Nelson Ascher.


CÉU ESPUMANTE

No céu que espuma, a lua oscila.
Estar vivo me causa espécie.
A morte assídua espreita a Idade:
quem ela encontre, empalidece.

O ano grita e depois desmaia.
(Gritara olhando ao seu redor.)
Que outono ronda-me de novo?
Que inverno embotado de dor?

Sangrava o bosque; mesmo as horas
sangravam no vaivém dos dias.
Ventos riscavam, sobre a neve,
cifras enormes e sombrias.

Já vi de tudo; o ar me esmaga
com seu peso; um silêncio cresce
ruidoso, cálido e me abraça
como fez antes que eu nascesse.

Detenho-me junto de um tronco
que agita iroso as frondes plenas
e estende um galho. Há de esganar-me?
Não é fraqueza ou medo – apenas

cansaço. Calo. E o galho apalpa
os meus cabelos, mudo, aflito.
Cabe esquecer – mas não há nada
de que já tenha me esquecido.

Espuma afoga a lua; o miasma
estria os céus, verde e agressivo.
Sem pressa, enrolo com cuidado
o meu cigarro. Eu estou vivo.

0 comentários:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails