1 de abril

Neste 1 de Abril, dei uma Conferência sobre interdisciplinaridade no Instituto de Língua e Literatura Portuguesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. O convite veio por parte do simpático chefe do instituto João Nuno Corrêa-Cardoso, que nos recebeu - Karinna e eu - com uma especial delicadeza e simpatia. O evento se chamava "Encontro com o poeta Márcio-André" e na plateia havia até uma freira. Aproveitando o fato de ser o dia internacional da mentira, li um texto (terminado horas antes da conferência) chamado  "A didática pelos quanta" (fragmento mais abaixo), que debatia, entre outras coisas, a falsa separação entre ficção realidade.

Mas o mais bacana de tudo foi poder reencontrar por lá o meu velho amigo Boaventura de Sousa Santos, grande sociólogo e poeta, que não via há mais de dois anos.


A didática pelos Quanta (fragmento)
Márcio-André

"Obviamente, a percepção pré-socrática de que tudo é um (Heráclito), na qual encontramos um grande amparo para nossa didática, não infere a eliminação das diferenças, mas unicamente a radicalização do equilíbrio entre o que é um e outro. Pois que numa didática pelos quanta, as diferenças não são excludentes e as identidades não são niveladoras. As diversas realidades são concomitantes, realidades opostas e contraditórias coabitam, consubstanciam e determinam o real, não por eliminação ou assimilação (o que é próprio de nossa tradição), mas em suas diferenças radicais, tal como a complementaridade, para não enlouquecer diante das partículas, aceita que informações excludentes entre si sejam concomitantemente verdadeiras, sendo, o confronto dessas, a única forma possível de descrever o “objeto” observado. Vale ressaltar, entretanto, que, no âmbito da física, a dualidade onda/partícula determina que a luz se defina – onda ou partícula – a partir do instrumento que se escolhe pra observá-la, unicamente por uma questão narrativa contida na própria natureza de nossos clássicos “instrumentos” e “instruções” de observação. Dificilmente a linguagem científica dá conta da concomitância dessas duas realidades impossíveis e absolutas em um só ente. Quem dá conta disso é a poesia.

Pois, muito mais que representar uma função específica da linguagem, a poesia somente revela o que a linguagem já é. É nesse desvelamento que a poesia se insere, trazendo novas e múltiplas definições para o real. A poesia – e aqui não estou falando de poemas, mas da poesia do poema (poesia da poesia) –, gesta, em seu estômago luminoso, a própria luz, em suas infinitas concomitâncias e espectros. Mais: a matéria luminosa da poesia ilumina a própria ficção da luz, fazendo-a luzir no real. E é no luzir real que a luz se ficcionaliza enquanto poesia, passível de ser sonhada pela física e enumerada pela matemática. Real e ficção sonham-se mutuamente nas escala do mesmo. 

Aliás, os limites impostos entre ficção e realidade talvez seja a maior fraude de nossa tradição filosófica, simulacro espistemológico da vontade de discernir o nós dos outros, amparado pelo julgamento clássico do que é falso e do que é verdadeiro. É pois que para a nossa didática não há sequer essa ideia. E não se trata de uma questão puramente retórica, mas concreta, que tem o poder de colocar o homem frente a questionamentos profundos quanto ao seu sistema ético. O desastre de Chernobyl, a desertificação do mar de Aral e o muro de Berlim servem bem como exemplos. Esses eventos teriam sido inacreditáveis caso não tivessem ocorrido. A única diferença aceitável entre ficção e realidade é o fato de aquilo ter acontecido ou não e sabemos que qualquer história, qualquer passado, é prospectivo ao futuro que se queira chegar e, portanto, segue determinados parâmetros absolutamente ficcionais (a ciência na qual qualquer história se baseia é uma ficção dela mesma). Todo passado é uma invenção e todo futuro uma possibilidade, sendo a única realidade o presente, este tão moldável quanto o sonho. É a ficção (do latim fingere, moldar) que conforma a coisa (res, real). Portanto, toda ficção é real. Essa é a contaminação máxima, aquela em que nos contaminamos do sonho e da morte – esses enigmas".

Coimbra, 1 de abril de 2009

3 comentários:

Ronaldo Ferrito disse...

Boa conferência, a única coisa que me afligiu foi esta frase, que acaba soando uma retorno metafísico.

"É a ficção (do latim fingere, moldar) que conforma a coisa (res, real). Portanto, toda ficção é real."

A ficção aparece como um princípio de conformidade do real, ou seja, a sua origem maior e eficaz. Seguindo seu pensamento na palavra "portanto", somente por ser esse princípio (e consequentemente por isso) ela seria o real por excelência - por dar a conformidade ao real.

Porém, sabemos que nem a ficção nem a coisa são reais, antes de serem num só; a ficção e a coisa, esta daquela e aquela desta, uma e outra, na sua implicação do único que é ao mesmo tempo coisa e ficção. O sonho concede uma coisa que, na evocação de sua ausência, concedeu o sonho. O sonho somente ficciona coisas que concedem sonhos.

Questiono se "A ficção que 'conforma' a coisa"? Diria que não, pricipalmente pelo "conforma". Todo movimento do real não poderia ser o movimento de uma ação para uma coisa, porque na gestação do fingere as coisas já são os gestos do agir - o universo é a gestação dos gestos, um mímico luzente na escuridão do palco. A coisa em sua ação de ser e elevar-se como coisa. Pois, então, que "moldar", ou 'conformar' é esse do qual você fala, Márcio?

Sei que você sabe isso, mas todos lá certamente acharam que já tinham pensado tudo o que você disse por causa das palavras burras "conformar" e "moldar" - traduções metafísicas do caralh... Um final desastroso para o pensamento, porr... Parece Barthes... Fala e fala para reafirmar a metafísica no parágrafo de baixo e "poeticamente".

Dá logo a p#@ do raio para eles!

M-A disse...

Porra, Ferrito, tu não tem outra coisa para fazer não? Vai ver novela. Só tu mesmo para me encher o saco com essa merda : )

Sacanagem. Vou pensar a respeito... como eu disse: terminei esse texto horas antes da conferência, e é natural que eu faça alguns ajustes na revisão (o que não quer dizer que eu esteja te dando razão, hehe).

Valeu pelo comentário ; )

Eu já disse: nós não temos raio destruidor...

Ronaldo Ferrito disse...

Você diz:

"Vou pensar a respeito... como eu disse: terminei esse texto horas antes da conferência, e é natural que eu faça alguns ajustes na revisão (o que não quer dizer que eu esteja te dando razão, hehe)."

Deixa de ser mentiroso, caro irmão. Sabemos que você já concordou comigo e que vai revisar essa parte. Senão ficarei o resto da vida dizendo que enganou, com sua retórica (no sentido dado pelo nosso mestre Manuca), os portugueses todos.

Você sabe que eu sei que isso foi uma gafe poético-filosófica, e você sabe como eu eu, porque caminhamos à beira do mesmo Rio (Hau).

Abraço fraterno de seu irmão.

Ferrito

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